Diversão e Arte

1ª noite do Festival trouxe histórias com clima surreal e aplausos mornos

Ricardo Daehn
postado em 26/11/2010 08:00
Plateia cheia no Cine Brasília para a primeira sessão do festival, que exibiu o longa dos diretores Marina Meliande e Felipe BragançaA primeira noite da mostra competitiva da 43; edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro abriu espaço para histórias fantásticas. O místico e o surreal permearam os curtas Cachoeira e A fábula das três avós, em sessão iniciada com atraso de 40 minutos, enquanto o longa carioca A alegria apostou em poesia e sensorialidade, fazendo referência a cineastas como Federico Fellini e John Hughes, além da composição Ode à alegria, de Beethoven. A julgar pela saída silenciosa da sala de projeção, a plateia não embarcou por completo na proposta antirrealista. Mesmo que não tenha dado sinais de desagrado.

Apesar dos aplausos mornos, os diretores do longa, Felipe Bragança e Marina Meliande, ficaram satisfeitos com o fato de os espectadores não terem abandonado a sessão antes do final. ;Gostei da reação das pessoas, que ficaram muito concentradas, de olhos arregalados, curiosas. Muitos aguardaram até o fim dos créditos;, afirmou Bragança. ;É um filme difícil, estranho, que instiga as pessoas a reagirem o tempo todo, pela intensidade que conseguimos no efeito não naturalista. Mas senti um público participativo, atento e imerso;, completou Marina.

Ontem, durante o debate de realizadores realizado no Hotel Kubitschek Plaza, a dupla de diretores afirmou que os atores foram orientados a decorar menos e improvisar mais, para garantir a naturalidade. A intenção era que eles agissem como se estivessem ouvindo vozes e, em muitos momentos, Marina Meliande e Felipe Bragança chegaram a soprar falas não decoradas a quem estava em cena. Para Marina, a obra vai contra o cinema de nostalgia, a melancolia e o empacotamento comercial: ;Tínhamos vontade de mostrar a semelhança entre a nossa geração, que hoje está na casa dos 30, e esses adolescentes. Esta geração é taxada pela apatia e pela melancolia, mas não a vemos assim;.

Para a atriz que personifica a menina Luíza, Tainá Medina, de 16 anos, o filme é uma peça única, por subverter a forma como os dilemas da adolescência costumam ser tratados pelo cinema nacional. ;Meu trabalho de composição me levou a observar coisas ao meu redor. Peguei muito dos meus amigos, de adolescentes que prestam atenção. Talvez os adolescentes entendam mais do que os adultos;, esclareceu.

Curtas
Com a exibição do curta-metragem Cachoeira, é possível que tenha se quebrado um jejum de quase 40 anos sem a presença de um filme amazonense na competitiva do festival. A informação é do diretor Sérgio Andrade, que fez uma pesquisa informal. Baseado em fatos, o curta é sobre um ritual comum entre jovens indígenas, em que a mistura de álcool com outras substâncias é suficiente para encorajá-los ao suicídio como única maneira de fugir de uma realidade social e econômica sem perspectivas.

;Não pretendia trazer a Amazônia ecochata, com índio bonzinho. Amazônia não é só mata e floresta. É homem, e homens são cheios de problemas;, acrescentou o diretor, no debate de ontem. ;É uma adaptação livre sobre um episódio verídico. Essa história aconteceu em São Gabriel da Cachoeira. Existiu um rapaz que cultuava trash metal e o livro de São Cipriano e incitava os outros índios ao suicídio;, explicou Andrade.

O segundo curta da noite, A fábula das três avós, de Daniel Turini, dividiu as reações dentro da sala de projeção. A saga fantasiosa da menina orfã que conta com a ajuda de um estranho amigo para escolher entre três avós recebeu aplausos e vaias da plateia. ;Filmes para crianças permitem uma maior liberdade de linguagem. É possível brincar com tudo, som, imagem, objetos, figurinos;, comentou o diretor. Referências à Alice no país das maravilhas foram involuntárias, mas Turini admitiu que buscava inspiração em fábulas quando decidiu reler o clássico de Lewis Carroll.

Crítica // A alegria***

SOPRO DA JUVENTUDE
; Tiago Faria

O contraste é marcante: enquanto o circuito comemora os recordes de Tropa de Elite 2, que já soma 10 milhões de espectadores, o 43; Festival de Brasília iniciou a mostra competitiva com três pequenas aberrações ; filmes misteriosos, inclassificáveis, que possivelmente seriam rejeitados por analistas de mercado que procuram um sucessor para o coronel Nascimento. Produções que, para os padrões dos multiplexes, fazem tudo errado. Em vez de realismo, optam pela fantasia. No lugar do comentário social (sobre a corrupção, a selvageria dos políticos), embarcam em delírios juvenis. Para uma mostra que defende o risco e a reflexão, o timing parece perfeito.

Aguardado com certa expectativa, provocada por burburinho no Festival de Cannes (onde passou na mostra paralela Quinzena dos Realizadores), o longa carioca A alegria (foto) desembarcou no Cine Brasília como um objeto estranho, mas totalmente identificado com uma edição que aposta em sopros de renovação. Atrevimento não falta a esse mergulho no imaginário adolescente, que pode ser descrito como um cruzamento (nem sempre feliz) entre as atmosferas sobrenaturais do tailandês Apichatpong Weerasethakul (vencedor de Cannes com Tio Boonmee), as comédias teen dos anos 1980 e as travessuras do cinema marginal.

As ambições dos diretores Felipe Bragança e Marina Meliande (de A fuga da mulher gorila) são, portanto, imensas ; e fluem no mesmo ritmo desenfreado das divagações da protagonista, Luiza (Tainá Medina), que inventa para si um Rio de Janeiro fantasmagórico, povoado por monstros e piratas. A realidade paralela, o avesso dos ;favela movies;, ecoa uma cidade sequelada pela brutalidade. O mal estar se hospedou no cotidiano: um homem se esconde no quarto da menina, traumatizado pela violência.

Resumir o longa a essa observação do Rio, no entanto, é perder o que ele tem de mais corajoso. Num salto sem rede de proteção, Felipe e Marina permitem que as impressões dos meninos e meninas contaminem toda a narrativa, definindo um tom onírico que enevoa a trama. Não é uma escolha simples: os diálogos, a maior fraqueza do projeto, forçam a mão na poesia pueril (;Eu queria que você fosse um sabor de sorvete;, por exemplo). Mas o que há de irregular na narrativa, inflada por uma torrente de referências típicas de diretores-cinéfilos, é compensado pelo poder de cenas cheias de texturas e significados ; tão intensas quanto os desejos dos personagens.

O maior desafio de A alegria é converter imaginação em imagem. Uma complicação que os curtas da noite enfrentam sem tanto sucesso. O amazonense Cachoeira (HH), de Sérgio Andrade, desperdiça um tema instigante ; os rituais místicos e macabros de jovens índios ; num curto-circuito confuso entre documentário e ficção. Igualmente frustrante é o desfecho do paulistano Fábula das três avós (HH), Daniel Turini, que, apesar do apuro técnico, sofre com o excesso de firulas no tratamento do universo infantil. Ainda assim, são as promessas de um cinema brasileiro que ousa tirar os pés do chão.

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