Ricardo Daehn
postado em 27/11/2010 08:00
[FOTO1]Depois de uma noite de fantasias, o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro desceu à realidade: os filmes exibidos quarta-feira, no Cine Brasília, acompanharam personagens que, anônimos ou conhecidos, se entrelaçam às cidades onde vivem. Em Transeunte, primeiro longa de ficção de Eryk Rocha (Rocha que voa), o centro do Rio de Janeiro ocupa um espaço tão privilegiado quanto o do protagonista, o solitário Expedito. O traçado urbano de São Paulo e de Contagem (MG), respectivamente, também saltam ao primeiro plano nos curtas Angeli 24 horas, de Beth Formaggini, e Contagem, de Gabriel e Maurílio Martins.Apesar da alteração de rota, o lirismo e o tom reflexivo seguiram em alta na competição. Com cenas silenciosas e lenta observação do cotidiano ; uma estética que, nos momentos de maior abstração, se aproxima da videoarte ;, Transeunte penou para se comunicar com o público. Nos primeiros 20 minutos, houve desistências. Mas o despertar do personagem, que se reencontra com a música (escrita por Fernando Catatau, da banda Cidadão Instigado) e com a boemia, conquistou os espectadores que permaneceram na sala. Foi aplaudido, ainda que sem entusiasmo.
;O público estava atento. Apesar de ter apenas três ou quatro diálogos, Transeunte tem um ritmo musical. Não é imediatista;, comentou Eryk Rocha, ao fim da exibição. ;Não é todo filme que é feito para rir ou chorar. Este é um filme de imersão, para pensar, sentir. O cinema está muito falado, sem espaço para o espectador participar, preencher os espaços;, afirmou o diretor, que dedicou a sessão à mãe, Paula Gaitán, e ao pai, Glauber Rocha. ;Primeiro, nos ajustamos à dimensão interna do protagonista. Associamos elementos externos a tudo o que está refletido no espaço do corpo dele, demonstrando que se trata de mais um anônimo;, observou o diretor de fotografia Miguel Vassy.
Na apresentação do longa, o cineasta lembrou a relação afetiva que preserva com Brasília, onde nasceu. ;Guardo uma memória muito forte da cidade no meu corpo;, assumiu o diretor de 32 anos, que assistiu à primeira cópia do filme no sábado passado. ;Mas posso dizer que ele nasceu aqui, na tela do festival.; No debate com a equipe da produção, ontem pela manhã no Kubitschek Plaza, Eryk Rocha disse que uma das principais referências para o projeto foi o cubano Memórias do subdesenvolvimento, de Tomás Gutiérrez Alea: ;Gosto das camadas do filme, da mistura de prosa e poesia;.
Se Transeunte não deixou a impressão de favoritismo, a atuação de Fernando Bezerra já desponta como uma das grandes apostas ao Candango de melhor ator. Com 50 montagens de experiência e participação em 11 filmes, ele ressurgiu nas telas uma década depois de protagonizar Mário (de Hermano Penna). ;A vantagem no cinema é que a câmera busca tudo em você. Para a composição, busquei, no começo, insumos de fora, mas aquilo tudo me puxava para a minha vida.
O personagem tá comendo o tempo, não apenas o espaço, na eterna caminhada: foi aí que eu agarrei para a criação;, comentou Fernando, 71 anos.
Palco de Angeli
Aplaudido em cena aberta, o curta Angeli 24 horas garantiu cumplicidade da plateia logo nos primeiros depoimentos do cartunista, que aceita embarcar num autorretrato irreverente. ;Ele topou o convite na hora. Mas nas primeiras conversas que tivemos, percebi que ele não se desgruda do personagem que criou de si mesmo. Ele é um ator. Decidi dar um palco para o Angeli;, contou a cineasta Beth Formaggini, que produziu longas como Peões e Edifício Master, de Eduardo Coutinho.
O esmerado trabalho de cenografia, inspirada nos traços do artista e assinada por Roberto Eiti, impressionou o entrevistado. ;Ele suava em bicas.
Ficou impressionadíssimo com o cenário que construímos dentro de um estúdio;, relembrou Beth. Na tela, a cidade de São Paulo é quase tão importante quanto o trabalho do artista. ;Foi natural. Ele é de São Paulo, dos punks, dos doidões, do bar.;
Mais enigmático, o curta Contagem deu um nó na cabeça de muitos espectadores com uma tragédia construída a partir de diferentes pontos de vista. ;Nossa intenção era fazer um filme que tivesse vínculo com o espaço. Moramos na divisa entre Contagem e Belo Horizonte, uma área abandonada. Para nós, foi essencial filmar um lugar que não havia aparecido antes no cinema;, observou o diretor Gabriel Martins no debate de ontem.
[FOTO2]CRÍTICA - TRANSEUNTE ***
Sinfonia do cotidiano
; Yale Gontijo
Dos delírios juvenis à melancolia da maturidade. A exibição do longa-metragem Transeunte (foto), na segunda noite competitiva do 43; Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, empurrou os espectadores para dentro do mundo monocromático do aposentado Expedito (Fernando Bezerra). Experimentado ator de teatro, Bezerra trabalha com minimalismo frente a um personagem que descobre a crença na vida antes da morte. Iniciada, simbolicamente, a partir do segundo enterro da mãe. A descoberta não viaja com a velocidade de um trem expresso, mas na contemplação de trajeto cumprido a pé.
A primeira ficção de Eryk Rocha trava diálogo intenso com os documentários de apuro estético Pachamama e Rocha que voa (os dois primeiros longas do filho de Glauber Rocha) e opta por narrativa sem palavras, desenvolvida pela trilha sonora composta pelo guitarrista Fernando Catatau. Nem por isso desenvolve um filme silencioso. A multidão que afasta Expedito do convívio social faz-se presente em sinfonia de ruídos urbanos intensos.
A cidade (São Paulo, desta vez) é também personagem no documentário Angeli 24 horas (HHH), primeiro curta-metragem da noite. O monólogo dirigido pela experiente cineasta Beth Formaggini se apoia no carisma infinito do cartunista punk Angeli, mas não se habilita a desenhar linha além dos traços da reverência. E o trabalho de conclusão de curso de cinema dos mineiros Gabriel e Maurilio Martins, Contagem (HH), segundo curta-metragem da noite, deixa muitas questões no ar. Menos por habilidade cinematográfica e mais por ausência de domínio narrativo.