Diversão e Arte

Público embarcou na proposta do longa Amor?, de João Jardim

Ricardo Daehn
postado em 30/11/2010 07:20
Em uma edição afinada com o cinema de risco e provocação, o longa-metragem Amor? dava sinais de que provocaria uma mudança de tom na mostra competitiva do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Com um elenco de atores conhecidos (Julia Lemmertz, Lilia Cabral e Eduardo Moscovis, entre outros) e a proposta de comunicação direta com o espectador, a ficção dirigida por João Jardim (de Janela da alma e Pro dia nascer feliz) gerou fortes expectativas em uma plateia que lotou o Cine Brasília e se manifestou ; até com risos ; durante toda a projeção de um filme encenado a partir de depoimentos dramáticos, por vezes chocantes, sobre abusos em relacionamentos amorosos.

;Nunca imaginei que conseguissem rir com o filme. Foi uma surpresa, e uma sessão emocionante;, comentou o cineasta, após a exibição. Atento ao comportamento dos espectadores, João Jardim preferiu assistir ao longa próximo às últimas poltronas do Cine Brasília. ;Notei que as pessoas estavam muito ligadas no filme, prendendo a respiração. Foi forte;, avaliou. E fez questão de destacar que, apesar de mais acessível que os outros longas exibidos anteriormente na competição, Amor? também investe numa proposta atípica: a maior parte da duração é composta por ;monólogos; dos atores, que interpretam casos reais, íntimos. ;A maior dificuldade foi fazer com que os atores mergulhassem nas histórias. Felizmente, isso aconteceu;, explicou.

Ainda que inevitáveis no decorrer da sessão, as comparações com Jogo de cena (de Eduardo Coutinho) não parecem fazer sentido para Jardim. ;São casos muito diferentes. Jogo de cena discute a representação. No meu filme, o que importa é o tema: as relações amorosas. Ninguém nem lembra do conteúdo do filme do Coutinho. Este é mais semelhante com Janela da alma. O filme é o conteúdo do processo;, comparou, ontem, no debate do Kubitschek Plaza. Na primeira experiência com ficção, o diretor se escora principalmente nas performances dos atores, que correspondem à altura. Nos créditos finais, o público aplaudiu a cada aparição dos nomes e rostos dos intérpretes. No ;palmômetro;, Julia Lemmertz e Lilia Cabral saíram em vantagem. As duas atrizes não compareceram ao Cine Brasília.

O diretor João Jardim (E) com os atores Silvia Lourenço, Cláudio Jaborandy, Fabíula Nascimento e Angelo Antônio: ;Assisti ao longa pela primeira vez, entrando no mesmo barco dos espectadores. Para mim, é uma ficção total. O ator é sempre o canal de algo que existiu. Pelos aplausos e risos, percebi que as pessoas se identificaram;, comentou a atriz Fabíula Nascimento, que acompanhou a sessão com Ângelo Antônio, Sílvia Lourenço e Cláudio Jaborandy. ;Em nenhum momento entramos em contato com as pessoas que deram depoimentos para o filme. É uma questão de respeito, de preservar essas pessoas. A interpretação vem de como nós compreendemos aquilo tudo;, comentou Cláudio. ;Cada um de nós se jogou dentro dos personagens. Meu trabalho como atriz foi o de não julgá-los;, completou Sílvia.

Silêncio
A reação do público ; a mais positiva desta edição ; também comoveu a diretora de fotografia Heloísa Passos, de longas como Viajo porque preciso, volto porque te amo. ;Fiquei emocionada com o silêncio, que serviu de espaço para que o filme fosse ouvido. Já os risos demonstravam a identificação;, observou. ;É um privilégio ter um diretor que consiga uma harmonia entre todos os atores;, afirmou. Ontem pela manhã, no debate com a equipe do longa, Jardim comentou que o elenco teve espaço para a improvisação, mas que tentou se ater ao texto até como um mecanismo de defesa, para não sofrer com os desabafos. ;Imaginei um filme mais duro e mais violento. Mas, nos depoimentos, as pessoas me surpreenderam trazendo também o lado bom dos amores. Tentei incluir isso.;

Na apresentação da noite anterior, Jardim definiu Amor? como um filme ;falado demais;. Curiosamente, os curtas que o antecederam optam por momentos silenciosos, sem excesso de diálogos. ;Tem coisas que não precisam ser ditas. Você precisa confiar no poder do olhar;, afirmou o diretor Hélio Villela Nunes, do ;faroeste infantil; A mula teimosa e o controle remoto. Tal como o pernambucano Pablo Polo, de Café Aurora, ele preferiu limar o falatório que estava previsto no roteiro e optar por uma atmosfera mais sugestiva. ;Café Aurora é um filme sensorial. Ele foi criado para que o espectador visse, escutasse, cheirasse e sentisse com o paladar;, explicou, no debate do Kubitschek Plaza.

Crítica - Amor? **
[FOTO2]O DIVÃ DE JARDIM
; Yale Gontijo

Quando foi exibido na Quinzena dos Realizadores em Cannes este ano, A alegria, dos cariocas Felipe Bragança e Marina Meliande, foi chamado de ;óvni; pela crítica francesa. Em Brasília, o longa Amor?, de João Jardim, ocupa a posição de objeto estranho em relação ao conjunto numa edição que privilegiou o formalismo no espaço íntimo de O céu sobre os ombros (de Sérgio Borges), a melancolia poética de Transeunte (de Eryk Rocha) ou a estética vintage de Os residentes (de Tiago Mata Machado).

Em estrutura que lembra Jogo de cena, de Eduardo Coutinho, atores reencenam depoimentos reais de vítimas ou algozes de violência doméstica. Ao contrário do que acontecia na obra-prima de Coutinho, não existe aqui o mistério em torno do real e o encenado. Neste, o tema ligado à lei Maria da Penha se sobrepõe à narrativa e o filme se estrutura como cineterapia.

O divã de Jardim esquece-se de ativar a sensibilidade do espectador por meio da subjetividade (até ensaia algum tipo de poesia mais relacionada aos documentários de tevê a cabo para onde a fita será destinada após o festival) e empurra a responsabilidade dramática para o elenco formado por Ângelo Antônio, Lilia Cabral, Eduardo Moscovis, Cláudio Jaborandy, Letícia Colin, Silvia Lourenço e Fabíula Nascimento. O elenco corresponde à altura. Em especial, Julia Lemmertz (foto), cuja atuação encerra o filme.

Quase como numa compensação à verborragia que se ouviria na projeção do longa, os dois curtas-metragens da noite economizaram em palavras. A mula teimosa e o controle remoto (HH) brinca com as dualidades entre tradição/modernidade e campo/cidade usando a amizade entre dois garotos, um citadino e outro camponês. Pantomima cinematográfica singela. Num festival de cinema em que a inclusão de portadores de necessidades especiais é encarada como missão prioritária, o pernambucano Café Aurora (HH) narra o amor entre uma artista plástica cega e um barista surdo. É delicado, mas só se debruça no exercício de imaginação desse amor inusitado.

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