Diversão e Arte

Documentário que estreia em Brasília revela a intimidade de Saramago

postado em 02/12/2010 08:00
José Saramago ficou desconfiado quando recebeu os primeiros e-mails do cineasta Miguel Gonçalves Mendes. Lá pelas tantas, depois de expressar o desejo de fazer um documentário sobre o único Nobel de Literatura em língua portuguesa, Mendes escreveu a palavra ;intimidade;.

Alarmado, o escritor conhecido como um homem reservado, reagiu: era só o que faltava, alguém querer filmar sua intimidade. Mendes não desistiu. Pediu a Saramago que assistisse a Autografia, documentário que acabava de realizar sobre o poeta e pintor surrealista Mario Cesariny. O escritor mudou de ideia. ;Ele viu o filme e disse: ;Isso não é um documentário, é outra coisa;. Então disse uma coisa superbonita: ;Eu tinha medo de não ser tão interessante como o outro cara;. E foi aí que a coisa começou;, conta Mendes.

José Saramago e a mulher, a jornalista Pilar del Rio, em cena do filme dirigido por Miguel Gonçalves Mendes: delicado registro do cotidianoMas ainda era preciso convencer a mulher do escritor, a jornalista espanhola Pilar del Rio, a aparecer na fita. Só assim Mendes poderia dar forma a José e Pilar, documentário que estreia amanhã, sobre a intimidade do autor de Ensaio sobre a cegueira. Pilar não concordava. Achava que apenas Saramago deveria aparecer. ;Mas fui um chato educado, como ela diz;, ressalta Mendes. ;Pilar é aquela pessoa absurdíssima, superengraçada. Na primeira vez em que você a entrevista, ela assusta, mas é de uma generosidade incrível. Isso é que é muito bonito entre os dois, apesar de serem muito diferentes. Ele era muito português, muito melancólico, muito sereno; e ela, muito espanhola, muito veemente, muito forte.; Quebrar a barreira foi essencial para fazer de José e Pilar um delicado documento sobre o cotidiano ; dentro e fora de casa ; de um dos maiores nomes da literatura contemporânea.

Mendes evita o laudatório, mas não deixa de se curvar à genialidade de Saramago. Faz isso, no entanto, com uma proximidade que somente a confiança do casal poderia permitir. Há um certo grau de banalidade nas cenas filmadas, a quantidade certa para quebrar o distanciamento entre o autor e o homem. Saramago compenetrado na frente do computador a jogar paciência, Pilar recebendo do marido um tapinha na bunda enquanto o interrompe no escritório, o escritor a reclamar do pedido de mensagem de Natal para uma emissora de televisão (;Mas eu odeio Natal, como posso dizer isso?;), cenas coletadas ao longo de quatro anos para um material que chega a 240 horas. Uma parte dessas imagens vai integrar o extra do DVD e uma entrevista de oito horas realizada com o escritor deverá ser editada e publicada pela Companhia das Letras. Antes de morrer, em junho deste ano, Saramago chegou a ver uma versão de três horas.

Processo de criação
A relação do casal é um dos focos do diretor, mas não o único. Mendes também acompanha a feitura de A viagem do Elefante (2008), embora não deixe o filme tomar o ritmo e ficar amarrado ao processo de criação. Os compromissos ; e era extensa a agenda do escritor ;, a criação da Fundação José Saramago, o aniversário de 84 anos comemorado na cidade natal, Azinhaga (Portugal), o cansaço e momentos de intimidade em casa, em frente à televisão ou à mesa do jantar pontuam José e Pilar. Tudo intercalado com narração em off de trechos de Cadernos de Lanzarote, uma espécie de diário do cotidiano escrito por Saramago entre 1993 e 1995.

A amizade nascida dos encontros na ilha de Lanzarote, onde morava o casal, toma contornos afetuosos quando o escritor adoece e precisa ser internado, em dezembro de 2007. Para Mendes, foi o momento mais triste das filmagens. ;Todo mundo achava que não ia sobreviver. Quando se recuperou, foi uma alegria imensa. Um dos momentos mais bonitos foi essa recuperação e como ele estava feliz por ter mais uma chance;, lembra o cineasta. O lançamento de A viagem do Elefante no Brasil, em 2008, encerra o filme. Foi também a última vez em que o escritor esteve no país.

TRÊS PERGUNTAS - MIGUEL MENDES

O filme não conta propriamente a história de amor de José e Pilar, mas mostra o amor dos dois. Essa foi sua intenção?
Eu não tinha necessidade de fazer um filme sobre o homem e a obra porque acho que não estaria trazendo nada de novo se fosse por aí. E o amor não se conta dessa forma, ele existe ou não existe, se vê ou não se vê. No cotidiano deles, sente-se o amor a cada momento. É um retrato sobre o dia a dia de duas pessoas que se amam, que têm determinado papel no mundo e que acreditam em determinadas coisas e tentam melhorar o mundo segundo aquilo que acreditam. E sempre tentei que o filme desse espaço ao espectador para interpretar tudo e não que fosse um documentário pedagógico.

Em determinado momento do filme, durante uma constrangedora coletiva de imprensa, Saramago diz ao repórter que dá as mesmas respostas porque as perguntas são sempre as mesmas. O filme vai além disso;
Acho que é isso que o filme traz de novo. O pensamento do Saramago está por toda parte, nos livros, nas entrevistas que foram feitas. O filme é a beleza das coisas banais. E algumas coisas universais, como falar da vida de um homem que tinha muita pena de morrer. Apesar de o filme ser muito sobre a morte, é também otimista, porque diz que a vida é só esta e que não vale a pena perder tempo chorando, se quisermos ser felizes é agora. É levar a vida ao limite, e ele fez isso muito bem.

O filme é sobre a morte por causa da doença de Saramago e da idade ou por causa de sua melancolia?
O filme é sobre a morte porque é uma obsessão minha, não tem nada a ver com ele, ele não era obcecado pela morte. Todos os meus filmes giram em torno da presença da morte e o que estamos aqui fazendo. Claro, eu tinha consciência de que o tempo estava acabando, e é isto que ele diz no fim: ;Eu queria mais tempo;. Por isso, tinha urgência em escrever tudo que queria escrever e dizer tudo que queria dizer, mas não acho que isso seja negativo ou deprimente. Isso é realmente viver.

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