Nahima Maciel
postado em 09/12/2010 08:00
O escritor angolano José Eduardo Agualusa coleciona milagres. Anota os acontecimentos do dia num diário para depois reler e se dar conta que, surpreendentemente, milagres acontecem todos os dias. As crianças costumam perceber com mais facilidade essa sucessão diária de fatos fantásticos. Adultos são um tanto ceguetas para a questão. Mas o narrador de Milagrário pessoal tem consciência da quantidade de milagres que podem acontecer em um dia e, com ele, Agualusa foi aprendendo a perceber. O 10; romance do escritor nasceu quando o milagrário virou o ponto de partida para a invenção de uma nova língua, e é para falar sobre isso que o escritor desembarca hoje na cidade. Às 9h, ele conversa com alunos da Universidade de Brasília (UnB) no encontro Literatura hoje, do qual participam também Luiz Ruffato, Ronaldo Correa de Brito, Maria Esther Maciel e Claudio Daniel. Às 20h, lança o livro no Rayuela.
Milagrário pessoal é uma homenagem à língua portuguesa. É também uma história de amor em vários sentidos. Um velho professor atiça a curiosidade de uma caçadora de neologismos ao sugerir a existência de uma língua secreta falada pelos pássaros e passível de ser aprendida pelo homem. Viagens e mistérios cercam a busca pelo manual do tal idioma e a palavra vira instrumento de sedução nas mãos do professor. ;A palavra sempre esteve presente na sedução e o livro mostra isso: é uma história de amor que passa por aí. Se tivesse que resumir o livro diria que é a história de um homem que, para seduzir uma mulher, lhe oferece uma língua nova;, diz o autor.
O resumo de Agualusa evita os detalhes que fazem de Milagrário pessoal uma espécie de síntese da relação do escritor com a língua portuguesa e seus territórios. Brasil, Portugal e Angola também são personagens do livro. Estão lá em forma de referências culturais exploradas à exaustão numa confusa mescla de fatos históricos com situações contemporâneas. Em todas elas, a língua é protagonista e rende narrativas cheias de graça. É o caso do professor timorense que recita Camões em sessões secretas para resistir à invasão das tropas indonésias. Ou do sujeito cujo avô conhecera Richard Burton, um explorador inglês capaz de falar 29 línguas com sotaque próprio de cada uma e que desceu o Rio São Francisco em meados do século 19.
Há um capítulo inteiro no qual Agualusa discorre sobre a suposta correspondência do escritor Camilo Castelo Branco. Angola merece um capítulo à parte, assim como episódios das trajetórias brasileira e portuguesa. ;É impossível escrever um livro sobre a língua portuguesa sem falar do Brasil. Noventa e cinco por cento dos falantes são brasileiros. (O livro) é uma homenagem à língua portuguesa.;
Busca
Caetano Veloso é citado diversas vezes e sempre funciona como uma lembrança de que os personagens circulam pelos tempos atuais. Os neologismos que motivam a busca pela nova língua são apenas um pretexto. Agualusa nem gosta deles. Prefere os arcaísmos. ;Neologismo é uma metáfora, já que o livro é uma alegoria sobre a criação de uma língua. Mas neologismos não me interessam muito;, garante.
O contraste entre as pausas para citações históricas e as pesquisas na internet sugere um trânsito temporal que pode ser herança de hábito bastante angolano. Agualusa sempre faz questão de ressaltar que é um contador de histórias. É que alguns escritores não são, ele diz, mas ele é. E esse detalhe tem algo a ver com a tradição oral do país natal. ;Em Angola, ainda existe a arte de contar histórias. As pessoas se reúnem em grandes almoços no sábado para contar histórias. Isso é importante para mim, cresci ouvindo histórias;, destaca.
Filho de angolanos, neto de um carioca e com um tanto de sangue português correndo na veia, o escritor deixou Luanda há pouco mais de um ano. Vem ao Brasil com frequência e fixou residência em Lisboa. Não dá mais conta de Angola, onde a democracia anda a dar tropeços cada vez maiores. Da capital portuguesa, pelo telefone, Agualusa conversou com o Correio sobre o Milagrário pessoal, o país natal e a língua portuguesa.
Literatura hoje ; encontro entre híbridos, líricos, narrativos
Com Luiz Ruffato, José Eduardo Agualusa, Maria Esther Maciel, Claudio Daniel e Ronaldo Correia de Brito. Hoje, às 9h, no Auditório do Instituto de Biologia (IB) da Universidade de Brasília (UnB).
Trecho de Milagrário pessoal para a internet
Repeti o que lhe dissera ao telefone: estava a trabalhar num ensaio sobre neologismos e ao ler, dias antes, a reportagem de uma visita a Olinda, assinada por ela, deparar surpreendido com três palavras desconhecidas.
Disse-lhe quais eram. Gostaria de saber onde as encontrara:
São novas?! Abriu ainda mais os belos olhos numa expressão de genuíno espanto. Não, não podem ser palavras novas. O senhor desconhecia essas palavras?
Desconhecia. Nunca antes foram utilizadas, ao menos em Portugal. Não estão dicionarizadas.
Estranho! Mara semicerrou os olhos, pensativa. Tem graça, tem mesmo muita graça. Li em algum lado que o português europeu se modificou mais, nos últimos séculos, do que a variante brasileira.
Sim, em parte sim. As periferias tendem a ser mais conservadores do que o centro.
Então não podem ser arcaísmos? Palavra que desapareceram em Portugal mas que continuam a ser utilizadas no Nordeste do Brasil? Por isso nos parecem, tão familiares. Talvez eu as tenho escutado lá, no Recife, em Olinda, e de tal forma me pareceram minhas que as comecei a utilizar sem me aperceber disso.