A paixão pelas letras e palavras surgiu, como na maioria dos casos, da admiração de filho para o pai. Fernando Marques ainda residia no Rio de Janeiro, onde nasceu e viveu até os 15 anos, quando, ao lado do irmão Umberto, consumiu 17 volumes infantis de Monteiro Lobato. ;Meu pai, engenheiro, devorava jornais e valorizava as letras, embora não lhe passasse pela cabeça que alguém quisesse viver delas ou para elas;, relata.
Por motivos profissionais do patriarca, a família mudou-se para Brasília em 1974 e acabou criando raízes na capital do país. Hoje jornalista e escritor, o carioca de 51 anos acumula quatro publicações literárias, incluindo a última, Contos canhotos, distribuída pela editora LGE.
O livro reúne 27 contos que retratam situações cotidianas que o inspiraram. Entre os textos contemplados, estão os favoritos do autor: ;Pizzarelli na danceteria;, ;No hospital; e ;Na delegacia;.
E diferentemente dos trabalhos anteriores, esse traz uma maior ligação com a cidade que o acolheu. ;Não se trata da Brasília paisagem ou da Brasília monumento. Estou à procura da Brasília essencial. Não há camelos na literatura árabe;, exemplifica.
Aficionado também por teatro e música, Fernando procura mesclar as três vertentes da arte no dia a dia. Tudo começou ao ouvir, em uma vitrolinha, o compacto com You;ve got a friend, de James Taylor. ;Pensei que gostaria de poder compor, um dia, letras e melodias como aquelas;, confessa. Já o lado teatral encontra-se explícito até na vida profissional.
Além dos ofícios já mencionados, o jornalista atua como professor universitário há 18 anos em disciplinas como literatura brasileira, dramaturgia e história do teatro. ;Todas essas formas de expressão se relacionam, sem dúvida, e nem poderia ser diferente. Um ator que não lê, um músico que só sabe música parecem estar trapaceando, por melhores que sejam como ator e músico. Falta algo;, defende.
Confira trecho do livro:
"Os leitores certamente conhecem as expressões neoliberalismo e neoliberal. Para os eternos do contra ; esse pessoal que insiste em achar que as coisas podiam ser melhores ;, neoliberalismo é o regime do vale-tudo, do levar vantagem sempre, da banalíssima lei de Gérson. O reino da indiferença pela sorte do próximo. Neoliberal é, portanto, o adepto desse estado de coisas.
Mas os leitores provavelmente não conhecem o Hilário. Podem acreditar: falta-lhes conhecer o Hilário. Ah, o Hilário! Sujeito fértil em ideias, dado a tiradas, a frases de efeito, a considerações originais. A respeito de si próprio, costuma dizer:
; Meu nome é apenas um acidente. Sou um homem sério.
Inclinado a teorizar sobre tudo, Hilário outro dia chegou perto dos amigos ; estávamos no bar ; com mais uma de suas teses. Dessa vez, no entanto, vinha triste. Estranhamos. Jamais o vemos triste, pelo contrário, só o encontramos radiante. Por que a tristeza, Hilário?
; Estamos vivendo a era do neoliberalismo amoroso ; respondeu, profundíssimo, as sobrancelhas contritas.
Neoliberalismo do amor? Exato, exato, insistiu o Hilário. Adivinhamos o que lhe passava pela cabeça de cabelos curtos e ideias fartas. Ele havia percebido que certo egoísmo começava a fincar sua bandeira também no território dos beijos e abraços. É isso mesmo, Hilário?
; É.
Surpresa unânime: Hilário, lacônico. Hilário, conciso! Hilário, incapaz de se derramar em frases longas, coladas umas às outras como carros de Fórmula 1. Olhem que havia sido convidado a falar; autorizado pelo grupo, ainda assim silenciava. Percebemos que algo não andava bem. E, naquele momento, pudemos notar o quanto prezamos o amigo.
Um de nós, médico, chegou a querer medir-lhe a pressão e a temperatura. Instrumentos clínicos saltaram sobre a mesa, vindos do nada. Outros, sem juízo, quiseram obrigá-lo a beber e se ofereceram para pagar as doses de uísque, desde que genuinamente nacional. Até um dos parceiros, perspicaz, entender tudo:
; Hilário está apaixonado ; disse, taxativo.
Pior. As paixões do Hilário ; no plural ; vinham sendo frustradas pelo que ele chama de neoliberalismo amoroso. Nesse novo salve-se quem puder do afeto e do sexo, Hilário vinha sendo o assalariado, o prestador de serviços, o desempregado. Exagero? Talvez. Fala, Hilário, conta, Hilário, desabafa, rapaz. A essa altura, o homem era vítima da mais espetacular das compaixões, coletiva, sólida, exigente e brutal. Fala!
Hilário, vejam vocês, falou. Disse que sua última namorada havia terminado o romance com ele por telefone:
; Por telefone! ; dizia, aos guinchos. Chorava. E se assoava na toalha.
Quisemos saber por que razão acontecera término tão sumário, tão indelicado, tão avesso a sentimentos civilizados (se é que os sentimentos um dia poderão ser, de fato, civilizados). Mas ele não nos ouvia. Estava tomado pelo demônio da catarse, da descarga emocional, do desabafo:
; Duas semanas depois, conheci uma garota. Uma moça, sei lá. Bonita. Inteligente. Mestrado em ciência política. Sensível, carinhosa... ; as lágrimas o impediam de continuar.
; Fala, Hilário! ; a plateia de amigos começava a mostrar impaciência. Ele, com medo de perder a atenção de seu público, a essa altura numeroso ; garçons e transeuntes já se aglomeravam em volta da mesa ;, continuou:
; Conheci a tal garota num bar da Asa Sul. Aquele, onde me cortaram a conta. Conversamos por duas horas no bar, depois fomos a uma festa. Foram quatro horas de conversa. Quatro horas de relógio ; bufava, suplicando crédito. Alguém, menos sutil, berrou: "E daí?".
; Fui ao banheiro. Ansioso, voltei logo.
; E então? ; a plateia não respirava, resfolegava em uníssono. Hilário:
; Foi embora sem se despedir e...
Diante de nós, tínhamos um grande ator, senhor da arte das pausas, uma espécie de Paulo Autran sem palco e sem bilheteria. Completou:
; Com outro. Foi embora com outro sem se despedir de mim. Outro que ela havia conhecido naquele momento.
Quisemos provas. Como assim, naquele momento? Não era o marido, o namorado, o amante?
; Não, não era. E tenho certeza disso porque fui eu que o apresentei a ela.
Silêncio. Podia-se tocar o silêncio com a ponta dos dedos. Até os carros, na rua em frente, pareciam mudos de espanto. Para Hilário, tudo se resumia a um fato social muito simples e muito sério: o neoliberalismo amoroso.
; Cada vez ligamos menos para os outros. A dor dos outros nos dá sono ; garantia, arriscando-se a nos cansar com as queixas patéticas.
Não quisemos questionar sua autoridade em tais assuntos. Afinal, ele perdera a namorada por telefone e, 15 dias depois, conhecera uma garota que o havia maltratado. Era um mártir, um mártir do amor. Ou melhor, do desamor, da frivolidade, da alegre perversidade moderna.
Saímos antes que o dono do bar resolvesse cobrar couvert artístico. Em meio a muxoxos e tapinhas no ombro, pagamos a conta. A dele não, a nossa."