Diversão e Arte

Jogos geométricos e construtivismo marcam desenhos de Di Cavalcanti

Nahima Maciel
postado em 14/12/2010 07:35
A ambição de Emiliano Di Cavalcanti podia ser facilmente satisfeita. Bastava deixar livre a imaginação do pintor. Tudo que queria, ele dizia, estava ali, dentro da própria liberdade criativa. É a mesma liberdade que salta da série de 80 desenhos da mostra Di Cavalcanti desenhista, um conjunto guardado há décadas em uma coleção privada e exposto ao público uma única vez na década de 1980.

Quando o joalheiro francês Lucien Filkenstein, radicado no Rio de Janeiro, descobriu o pintor, ainda não formara fortuna que permitisse adquirir uma das telas de Di Cavalcanti. Comprou então desenhos. Muitos. Mesmo mais tarde, como designer de renome, Filkenstein continuou com a coleção. Reuniu um total de 500 desenhos e conquistou uma amizade que levaria o pintor a criar até mesmo projetos de joias mais tarde realizadas pelo joalheiro.

A seleção e curadoria da exposição, feita por Jaqueline Filkenstein, filha de Lucien, morto em 2008, e pelo marchand francês Romaric Brüel, tem como foco a liberdade criativa que Di Cavalcanti enumerava como sua única ambição. ;Esses desenhos são esclarecedores;, acredita Brüel. ;Primeiro porque há uma liberdade maior que no trabalho do pintura. Ele explora mais a própria capacidade de imaginação, deixa o inconsciente e o consciente caminharem mais.; Brüel enxerga também uma intenção muito particular na série. O nível de refinamento e acabamento dos desenhos prova que o pintor os entendia como obras finalizadas e não somente como estudos para futuras telas.

História da arte
A diversidade de temáticas vai bem além da profusão de mulatas pintadas insistentemente por Di Cavalcanti ao longo da vida. Há, claro, contornos fartos, lábios grossos e corpos desnudos entre os desenhos, mas existe também uma boa quantidade de flertes com toda a história da arte da primeira metade do século 20 no Brasil e na Europa. O pintor alimentava encanto especial pela França. Morou dois anos em Paris, logo após organizar a Semana de 1922, que revelaria o modernismo brasileiro nas artes a partir de São Paulo. A amizade com
Filkenstein, judeu emigrado para o Brasil logo após a Segunda Guerra e fundador do Museu de Arte Na;f do Rio de Janeiro, durou até a morte do pintor, em 1976.

Apesar de também ter adquirido pinturas, o joalheiro e colecionador era fascinado pelos desenhos e muitos deles traduzem a amizade com Di Cavalcanti. Há retratos do próprio Filkenstein e de amigos em comum, assim como de familiares.

Mas é nas explorações do artista que estão as joias da exposição. O namoro com o construtivismo num jogo de figuras geométricas coloridas com corpos entrelaçados em A escada; as referências confessas assumidas em títulos como Figuras cubistas, Surrealismo e Figuras surrealistas; e a repetição de temas como morte e vida ; esta última sempre representada na figura de uma mulher voluptuosa ;, são indícios das preocupações plásticas e existenciais do pintor.

Di Cavalcanti faz parte de uma linhagem que começa em Édouard Manet e se estende pelas desconstruções de Picasso e pela exploração do inconsciente dos surrealistas. O nu feminino e o universo marginal dos bordéis, presentes em desenhos como Lupanar e Inferninho, são também frutos de uma maneira de ver o mundo. Quando Manet pintou sua Olympia, ainda no século 19, avisou ao mundo que não se tratava mais de idealizar mocinhas virgens e etéreas, mas mulheres desejadas e desejáveis. As mulheres de Di são herdeiras de Olympia, das Demoiselles d;Avignon, de Picasso, e das moças dos cabarés de Toulouse Lautrec. ;Há uma relação entre todo esse trabalho (de Di Cavalcanti) e todos os herdeiros da boemia do século 20;, avalia Brüel, que chega a confessar preferir os desenhos às pinturas.

O desenho como peça sincera, autêntica, abrigo de traços atrás dos quais o artista não pode se esconder, deveria, para o marchand que já trouxe ao Brasil obras de Claude Monet e Rodin, ser alçado à condição de arte maior. Obras sobre papel sempre ficaram em segundo plano no mercado de arte. Difíceis de conservar, em muitos casos são vistas como estudos preliminares para pinturas, essas sim valorizadas e mais longevas. No caso de Di, o acervo guardado por Jaqueline Filkenstein vai além do mero esboço. ;É possível ver com mais precisão o talento de Di se expressar na maneira como ele domina a técnica;, garante Brüel. ;O Di era um desenhista por natureza. Tinha um grande prazer em desenhar e não o fazia apenas porque precisava pintar.;


DI CAVALCANTI DESENHISTA
Exposição de desenhos de Emiliano Di Cavalcanti. Visitação até 16 de janeiro, na Caixa Cultural (SBS Quadra 4 Lote 3/4), de terça a sexta, das 9h às 21h

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