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Kanye West: refúgio para superar crise acaba em um dos melhores CDs do ano

postado em 19/12/2010 08:00
;Kanye West: polêmico, irreverente, mas um rapper com rara sensibilidade musicalNenhum homem deveria ter tanto poder;, admite Kanye West, 33 anos. A confissão do rapper americano, estampada no refrão de Power, poderia soar como um pedido de desculpas, uma rendição. Mas surtiu efeito contrário: carro-chefe do disco My beautiful dark twisted fantasy, a música iniciou a temporada mais poderosa de um astro que, em 2010, transformou o mundo pop num playground particular. Em paz com o público norte-americano e num romance firme com a crítica, Kanye se impôs como um dos últimos popstars que cultivam sérias ambições criativas, faturam alto e miram nada menos do que a unanimidade.

O excesso de extravagâncias poderia produzir um vexame em escala global. Mas essa história tem final feliz. Após um período de gafes e chiliques (segundo ele, provocados por excesso de trabalho), Kanye se isolou em Oahu, no Havaí, para escrever as canções mais pessoais da carreira. Torrou US$ 3 milhões, convidou dezenas de amigos para colaborar nas gravações ; entre eles, Jay-Z, Eminem, Rihanna e Elton John ; e anunciou uma ;ópera-pop; influenciada, entre outros tantos gêneros e artistas, pelo rock progressivo dos anos 1970 e os climas soturnos da banda inglesa Radiohead. Parecia ousado, mas poucos deram trela às bravatas do ídolo, que usou o Twitter para atiçar os fãs e provocar os inimigos.

Um mês após o lançamento nos Estados Unidos, o resultado da saga aparece na maior parte das listas de melhores discos de 2010 publicadas por revistas, jornais e sites norte-americanos. A Time, a Rolling Stone, a Spin e o site alternativo The A.V. Club o elegeram como o número 1. A Pitchfork, barricada da música independente, avaliou o álbum com uma raríssima nota 10. ;Ao construir épicos do hip-hop, ele faz toda a concorrência parecer vazia e superficial;, escreveu a Rolling Stone. Nas lojas, a fase também de colheita: na primeira semana, Kanye vendeu 496 mil cópias do álbum e turbinou três hits: Power, Monster e Runaway.

A acolhida generosa espana de vez um ano de crise para o rapper. Chamuscado por encrencas do showbusiness, Kanye estava afastado dos palcos e das cerimônias de premiação. A última polêmica envolvendo o músico data de setembro de 2009, quando ele invadiu o palco do MTV Video Music Awards para protestar contra o prêmio da cantora country Taylor Swift, que venceu pelo clipe de You belong to me. Para Kanye, a vencedora deveria ter sido Beyoncé, com Single ladies. Linguarudo também em relação a temas menos frívolos, pediu desculpas publicamente quando acusou George W. Bush de racista.

Holofotes
Os chiliques do astro reforçaram a imagem de uma celebridade egocêntrica, que faz tudo para garantir espaço permanente sob holofotes. Além de ter anunciado uma marca de roupas ; a Pastelle Clothing ; e de ter comparado Coldplay aos Beatles (com vantagem para a banda de Chris Martin), o cantor duelou com 50 Cent pelo domínio das paradas de sucessos (e venceu) e protestou contra uma suposta censura arquitetada por uma grande rede varejista contra a capa do novo disco, que mostra o desenho de um casal nu. O clipe de Runaway, com 35 minutos de duração, é apenas um exemplo do temperamento forte: ele próprio decidiu dirigir o curta-metragem.

Para divulgar o álbum, Kanye bolou estratégias inusitadas. Num desses surtos de marketing, avançou no microfone de uma aeromoça e, em plano voo entre Mineápolis e Nova York, interpretou os hits Gold digger e The good life. Acostumado a riscos, o rapper usa o hip-hop como base para uma mescla de estilos que inclui synthpop, música clássica, rock alternativo e soul music. No disco anterior, o confessional 808s and heartbreak (2008), cantou em todas as faixas acompanhado apenas de efeitos de auto-tune, que distorcem a voz numa cadência robótica. O novo é um salto ainda mais largo. ;Kanye gravou o álbum do ano numa época em que as pessoas não ouvem mais álbuns;, reparou o site The A.V. Club. Eis a ironia.

CRÍTICA // *****
Aflição a pista

Fã de Michael Jackson e Prince, Kanye West acredita que um astro pop não deve ser sensato. Não tem o direito à cautela. Não pode pensar pequeno. Deve, isso sim, investir os lucros do showbusiness na criação mais desvairada. Desperdício à serviço da invenção. Em tese, My beautiful dark twisted fantasy é uma sandice: um álbum de hip-hop concebido como um ;disco conceitual; dos anos 1970, com faixas longas e parrudas, que grudam umas às outras como numa ópera-rock do The Who. Mas que, sob os efeitos especiais, esconde um confronto muito pessoal entre um ídolo milionário e a indústria que o criou e o alimenta.

É, superficialmente, mais um disco americano de rap sobre fama, macheza e sexo. Para Kanye, no entanto, sucesso é céu e inferno ; uma força destrutiva que corrói tudo. O par mais eufórico do disco, não à toa, permite o duplo sentido: atendem por Hell of a life e Monster. Mas é nos momentos mais explícitos de aflição que o ídolo espia o futuro que aguarda os VIPs destronados: ;Pular da janela seria uma bela morte;, provoca a celebridade decadente Power, envolvido numa névoa sonora que combina coros afros com sampler de King Crimson. Escrito num período de crise, o álbum não esconde o medo do fracasso, da irrelevância. ;Às vezes a vida pode ser ridícula;, provoca, em So appalled.

A surpresa é que, dessa ;síndrome do quinto disco;, Kanye extrai um desejo de renovação e ousadia que estava aplacado desde o ótimo Late registration (2005). Cada uma das faixas experimenta uma nova química a partir de ingredientes que, à primeira vista, não combinam: riffs de AC/DC (Hell of a life), electropop com orquestra (All of the lights), soul music (Blame game), indie rock (Lost in the world), um épico levado ao piano (Runaway) e rap à moda antiga (Monster). Sem descanso, o disco nos lembra do tempo em que o pop ainda despertava mais deslumbramento que tédio. Kanye aprendeu a lição. (TF)


MY BEAUTIFUL DARK TWISTED FANTAS
Y
Quinto disco de anye West. 13 faixas, com produção de Kanye West outros. Lançamento Universal Music.
Preço médio: R$ 30

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