O novo secretário de Cultura aponta a sociedade brasiliense como leniente. Pedro Tierra, pseudônimo de Hamilton Pereira, acredita que a população fez vista grossa para a corrupção, mas reagiu na urna. Agora, ele diz, é hora de reconstruir uma autoestima destruída e, na cultura, isso significa pensar além do entretenimento. Aos 62 anos, ex-goiano nascido em Porto Nacional, hoje no estado de Tocantins, Tierra assume o cargo pela segunda vez. Durante a primeira gestão, entre 1997 e 1998, liderou a pasta a convite do então governador Cristovam Buarque. Na época, criou as Temporadas Populares, agenda de espetáculos com preços acessíveis realizados em todas as cidades do Distrito Federal. Tierra ainda está em fase de diagnóstico da situação da cultura na cidade e não tem projetos específicos para cada área, mas tem diretrizes.
Hora de reconstruir
A marquise do Espaço 508 ameaça desabar, o Cine Brasília é maquiado a cada ano para o festival e nunca reformado, o MAB está fechado e a Galeria Athos Bulcão virou depósito. O senhor tem planos para esses espaços? Essa situação dos equipamentos deriva de uma escolha política muito clara. As gestões posteriores a 1998 reduziram a política de cultura a uma dimensão que é a do entretenimento. Houve um processo de privatização das políticas: o Estado abre mão de suas funções e delega. A função da Secretaria de Cultura era um pouco alugar os espaços físicos para a iniciativa privada. Não partilho da ideia de que o Estado seja provedor e produtor de cultura. Quem produz cultura é a sociedade. Ao Estado cabe ser o indutor do processo. Se o Estado não tem política, acaba recaindo numa concepção muito utilitarista que não vislumbra, por exemplo, um aspecto singular dessa cidade: Brasília concentra o mais significativo conjunto arquitetônico erigido no Brasil no século 20. Isso provocou um completo descaso. O governo Agnelo (Queiroz) tem o desafio de se afirmar como um governo de reconstrução. Desde o projeto Temporadas Populares, que levava atrações de fora às cidades, nos anos 1990, mudou o jeito de se encarar e fazer cultura no Brasil. Hoje se fala em economia da cultura, em produção que gera emprego e movimenta a economia. O Temporadas vai voltar? Não ficou velho? O Temporadas Populares não foi concebido como política eventual, ele cumpriu vários aspectos e atendia a uma necessidade da economia da cultura no DF. Não houve um espetáculo de convidado de fora que não fosse precedido por artistas locais. Mas era insuficiente, porque as temporadas aconteciam em janeiro e julho e as pessoas precisam viver o resto do ano. Quem levantou esse tema da economia da cultura foi exatamente PT, no documento A imaginação a serviço do Brasil, que Lula ofereceu à sociedade brasileira no Canecão na campanha de 2002. Tem um capítulo sobre a economia da cultura que alimentou esse debate e que, depois, Gilberto Gil tocou quando assumiu o Ministério da Cultura (MinC). Brasília precisa mirar o MinC naquilo que produziu de mais significativo: descentralização, acesso ao público, apoio à diversidade cultural, pontos de cultura, que são âncoras muito importantes, indispensáveis nesse processo. A gestão do MinC durante o governo Lula teve também uma luta focada no aumento do orçamento, pelo qual pouco se combatia até então. O senhor pretende trazer essa luta para o Governo do Distrito Federal? Vai ter que ter orçamento. A secretaria tem orçamento próprio e terá esse orçamento ampliado. Não pode parar essa disputa. Nem se tocava nesse assunto porque não tinha política. A função do secretário de Cultura era alugar os equipamentos públicos para a iniciativa privada, então não precisava ter muito dinheiro. O dinheiro que aparecia era da Brasíliatur, de péssima memória. Vamos ter que corrigir, porque ao apresentar política você adquire legitimidade para lutar junto ao governador, ao secretário de Fazenda. Hoje o orçamento deve ser 0,6%. Precisamos ter um debate político permanente com nossos representantes na Câmara Legislativa, no sentido de compreender a cultura para além do espetáculo, que é necessário, mas que não resolve sozinho. Artes cênicas em Brasília não têm fomento. O Fundo de Apoio à Cultura (FAC) só incentiva a montagem e os espetáculos têm temporadas mínimas. O que fazer para o fomento do teatro e da dança? É insuficiente para a sociedade. Antes de tudo, temos que fazer um enorme esforço para que o FAC saia do amadorismo em que se encontra, para dar ao FAC a condução profissional que os artistas de Brasília e a cidade merecem. Para que ele (FAC) possa pagar o que deve, e está devendo coisa de 2009. Não vou disputar cargo eletivo, não tenho problema em dizer que a sociedade de Brasília foi leniente com a corrupção. Ela acordou, reagiu de maneira fantástica e acabou resultando nessa operação de limpeza que vai ajudar a imagem da cidade. E a cidade precisa acompanhar de perto. Vamos adotar uma política de transparência, de prestação de contas para que as pessoas se sintam informadas e participantes do processo. Uma das grandes polêmicas em 2010 foi o fato de os artistas de Brasília terem sido excluídos durante os eventos de comemoração dos 50 anos da cidade. Como pretende lidar com isso? Estou em Brasília desde 1995. O dia em que mais me envergonhei foi em 21 de abril deste ano quando, passando pela Esplanada, vi um desfile dos personagens da Disney. Isso é humilhação absoluta. É a falência. Essa cidade merece respeito. O que ela criou vai para a eternidade. Enquanto existir povo brasileiro será uma referência de beleza, criatividade, ousadia. A gente precisa encarar essa demanda que os artistas do Distrito Federal propõem de maneira séria e sem demagogia. Temos que ter clareza que a política pública de cultura tem como destinatário a sociedade e para alcançá-la precisa do talento do artista. A Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional sofreu um grande baque em 2010, perdeu seu maestro e viu suas contas envolvidas no esquema de corrupção do Buriti. Quais os seus planos para a orquestra? Acha que ela deveria se transformar em uma fundação? Isso é um problema de orquestras de todo o mundo, como lidar com financiamento de um corpo numeroso como é a orquestra. Eu pretendo ouvir a orquestra para discutirmos objetivamente. Sei que elaboraram projetos. Durante o período neoliberal em que o Estado se ausentou de suas responsabilidades, e julgava que o mercado era capaz de dar conta de tudo, proliferaram no Brasil as soluções criativas, como as associações de amigos, como forma de agilizar processos e escapar de uma legislação que é muito restritiva. Tem que olhar como São Paulo resolveu com a Osesp, por exemplo. A Biblioteca Nacional é mais uma sala de estudos que biblioteca, com um acervo formado por doações e compras feita com um orçamento mínimo. O senhor é um poeta, escritor. Como encara essa biblioteca? Não tem nem corpo funcional. Queremos discutir isso com o MinC para buscar equacionar. É uma coisa típica do que aconteceu em outras cidades: se produz o monumento e ele é uma casca, não tem conteúdo. Biblioteca tem que ter acervo, portanto tem que comprar livro. Mas também tem que abrir espaço para novas tecnologias. Esse horizonte da concepção de biblioteca como centro cultural e não como sala de estudos é importante. Temos algo em torno de 200 pontos de cultura no DF e acho que em cada cidade precisamos montar espaços que recebam artistas locais com calendário permanente. E nesses locais tem que ter a biblioteca, a gibiteca, a brinquedoteca porque tudo isso leva para o livro. A política cultural tem que ser percebida da maneira mais capilar possível.