postado em 30/12/2010 17:50
Fim de semana em uma cidadezinha do interior. Um ônibus antigo, todo colorido, para na praça central e dele saem figuras incríveis, personagens vindos do sonho de qualquer criança, maquiados, vestindo retalhos, trajes de chita, pernas de pau, transbordando de histórias para contar e experiências para dividir com a meninada local. Com pequenas variações, essa cena se repetiu em nove cidades de Goiás e Mato Grosso do Sul, entre os meses de setembro e novembro.
Os artistas mambembes são integrantes da companhia Os Buriti, que se mudaram de mala, cuia e figurinos para o caminhão-palco-camarim. Enquanto durou a Caravana Buriti ; arte, educação e saúde na estrada, eles rodaram cidades do Centro-Oeste para ministrar oficinas de dança, teatro, música e circo, além de apresentar espetáculos e atividades interativas nas escolas locais. A peripécia foi filmada, está em fase de edição e deverá, em breve, ser transformada em documentário.
A dona da ideia é a bailarina, diretora e professora Eliana Carneiro, da companhia de teatro-dança Os Buriti, que acumula décadas de dedicação à arte-educação. O sonho de levar inspiração e criatividade a lugarejos remotos começou há anos, quando sua trupe integrou o projeto Conexão Cultural, que convidou artistas de todos os cantos do país para se apresentar em um caminhão, onde houvesse gente para assistir. A essa vontade, Eliana adicionou a constatação de que existe um despreparo dos professores para despertar os alunos para a arte em sala de aula. ;Queria trabalhar com a perspectiva de movimento, autoexpressão, autoconhecimento, mais saúde e felicidade, sem deixar de lado o foco inspirador e a preocupação com a natureza. As escolas não têm preparo, o governo não investe e ninguém tem paciência de estimular esse universo;, relata.
Durante mais de dois meses, a casa da companhia foi um motor home americano, fabricado em 1976, comprado em um ferro-velho e praticamente reconstruído para a aventura no cerrado. O lar sobre rodas ganhou cama de casal, beliche, guarda-roupa, mini sala, cozinha e banheiro pequeno. Mesmo completamente recauchutado, estragou em alguns pontos da viagem e obrigou a mudanças na rota.
O plano original era chegar a Corumbá, no Mato Grosso do Sul, mas, por segurança, a companhia decidiu privilegiar o estado de Goiás. As cidades escolhidas foram Anápolis, Cocalzinho, Alto Paraíso, Aragoiânia, Rio Verde de Goiás, Bonfinópolis, Orizona e Silvânia, em território goiano, além de Anastácio, no Mato Grosso do Sul. Em cada uma delas, o veículo era estacionado em um lugar seguro, limpo e com água encanada, para garantir os banhos dos artistas. A rede de contatos foi estabelecida pelo Ponto de Cultura, projeto do Ministério da Cultura presente em milhares de cidades do país. Eliana e sua equipe dispararam e-mails a esses pontos e os escolhidos foram os mais interessados. A alimentação durante a estadia da equipe, de aproximadamente uma semana em cada lugar, ficava a cargo do município.
Magia
Uma vez acomodados, os integrantes da caravana davam início à vasta programação de encantos. Todos os dias, de manhã e à tarde, apresentavam o espetáculo Varal de histórias nas salas de aula de bairros carentes. A peça leva as crianças a uma viagem sensorial completa. Os atores entram, preparam um chá com ervas colhidas na cidade, ;para espantar os males do corpo e contar histórias que curam o coração e alimentam a imaginação;, descreve Naira Carneiro, também atriz, filha de Eliana e integrante da caravana. Cantam, dançam, sapateiam, tocam instrumentos feitos de material reciclável e apresentam personagens, como um jacaré de madeira nadando em um rio poluído, e cabe as crianças escolher seu destino.
Outros personagens que inspiram a meninada são o circense Chiquinho Gira-Gira, que leva as crianças a inventarem as histórias de seus colegas de picadeiro, e dona Filó, uma senhora que mora na roça e relata as peripécias dos netos à plateia. ;Quando visitamos comunidades indígenas, levamos uma boneca que vive em uma aldeia e conta os hábitos e brincadeiras locais;, descreve Naira. A interação começa quando os alunos são convidados a dançar e reproduzir movimentos vistos nas histórias dramatizadas. Eles também tocam instrumentos, aprendem a confeccioná-los e, por fim, fazem um desenho livre sobre o encontro com o grupo. São essas ilustrações que depois ficam expostas em varais na sala de aula.
Enquanto isso, os interessados podiam se inscrever em oficinas de iniciação musical e percussão, circo ou perna de pau. Os professores, além de receber orientações metodológicas, participaram de uma oficina sobre expressão, corpo e saúde, estendida também a agentes de saúde dos municípios. ;São conceitos para os professores desenvolverem trabalho corporal na sala de aula. Trabalhar com arte afeta a saúde, por isso os agentes foram incluídos. Um deles achou que as atividades ajudariam no trabalho que ele faz com um grupo de hipertensos;, revela Naira. Nem só a comunidade acadêmica pôde usufruir do programa. Praças e espaços públicos da cidade também receberam apresentações de peças do grupo.
Durante o trajeto, um triste retrato da educação se revelou: além do despreparo do corpo docente, é preciso driblar as péssimas condições das escolas. ;Encontramos estruturas destruídas, salas lotadas, escuras, sem ventilação. Professores com carga horária enorme e sem possibilidade de reciclar os conhecimentos. Uma escola na cidade de Silvânia tem verba anual de pouco mais de R$ 3 mil;, descreve Eliana Carneiro.
Mas a experiência também revelou a maior das recompensas ; a satisfação das crianças. ;Um menino me disse que aquele era o dia mais feliz da vida dele. Outra aluna me deu uma carta toda enfeitada de flores e teve uma criança que escreveu uma história para mim;, orgulha-se Naira. É essa retribuição que faz a trupe sonhar em manter o velho ônibus na estrada, estimulando artistas a se aproximarem cada vez mais da escola. ;Nelas é que a gente vai realizar as transformações e os encontros;, acredita Eliana.
Companheiros
Além da diretora do grupo Os Buriti, Eliana Carneiro e sua filha Naira, a caravana contou com mais dois integrantes. Carlos Frazão, fundador da ONG Tamnoá ; Tambores do Paraná, que desenvolve um trabalho musical com crianças da periferia acumulou as funções de motorista e professor de percussão. Nilo Carneiro, sobrinho de Eliana, filmou e fotografou a iniciativa.
Continuidade
O projeto foi selecionado pelo prêmio Myriam Muniz, concedido pelo Ministério da Cultura e pela Funarte. Mesmo com o fim do patrocínio, o grupo não pretende encerrar as atividades. Atualmente, estuda novos editais e busca apoio para seguir viagem. A próxima empreitada é levar o projeto para as cidades do Distrito Federal.