Diversão e Arte

Rodrigo Siqueira usou pequenas salas de cinema para divulgar documentário

postado em 03/01/2011 08:08
[SAIBAMAIS]Em 2004, o diretor mineiro Rodrigo Siqueira estava envolvido até a alma com a leitura do clássico da literatura nacional Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Ele resolveu, então, fazer uma imersão profunda pelo universo de Rosa numa expedição pelo interior de Minas Gerais. As andanças do Rodrigo totalizaram um total de 2.000km e encontrou destino certeiro na Serra do Cipó, região da Chapada Diamantina. A literatura de Rosa, sempre ligada à tradição oral brasileira, seria melhor resumida na figura de Pedro Vieira, 82 anos, conhecido como Seu Pedro de Alexina, morador da região. Seu Pedro, trabalhador rural, é guardião de um tesouro dos tempos do garimpo, que descende, na verdade, dos tempos da escravidão. Ele é o último a conhecer os vissungos, cantos travados em dialeto banguela cantados necessariamente em dupla. "Seu Pedro estava esquecendo os cantos porque não tinha com quem cantar. É preciso ter um versador e um respondedor. Não dá para ele fazer as duas partes porque exige muito da voz. Fiz um projeto de registro desses cantos para não se perder e recebi o apoio da Unesco que o enquadrou como um tesouro humano vivo", explica Siqueira. Cenas do filme Terra deu, terra come conta a história de Seu Pedro de Alexina, memória vida no sertão mineiroO projeto deu origem ao documentário Terra deu, terra come (leia quadro sobre o filme), dirigido por Rodrigo Siqueira, sobre os diversos atributos de Alexina. "Seu Pedro é muito mais do que cantador e contador de histórias. Ele é guardião de vários brinquedos populares, benzedor, curandeiro. Seria uma pena concentrar o registro audiovisual só nos vissungos", completa. Esse ainda não é o melhor da história. Numa iniciativa inédita no país, o cineasta resolveu lançar o filme simultaneamente nos cinemas e no circuito de cineclubes. A aposta rendeu até agora quase 10 mil espectadores para o filme, número recorde nesse tipo de exibição no Brasil. O normal seria que a produção chegasse aos circuitos alternativos somente depois de cumprir carreira em festivais e salas convencionais de cinema. "Na década de 1970 a 1980, na Embrafilme existia um departamento responsável por fazer cópias em 16mm para serem distribuídas em cineclubes. Tinham bons lançamentos. Mas, na escala do Terra deu é inédito. Em pouco mais de 75 dias, 134 cineclubes fizeram 184 exibições do filme", contabiliza Rodrigo Bouillet, coordenador de rede do programa Cine Mais Cultura, do Ministério da Cultura (Minc), que concentra os dados de várias redes de cineclubes pelo país. Para que a empreitada fosse possível, a Videofilmes (produtora do documentário) disponibilizou 800 cópias do filme em DVD para serem distribuídas pela rede de cineclubes do Cine Mais Cultura. Os responsáveis pelos cineclubes receberam material gráfico para divulgação das exibições, mas a data de apresentação pode ser marcada de maneira espontânea e pode ser repetida tantas vezes quanto for possível. A única exigência dos produtores é que fossem distribuídos questionários para serem respondidos pelos participantes após as sessões e que precisam ser reenviados à produção do filme. Assim foi possível contabilizar o total de público do documentário até agora. Circuito O raciocínio de Siqueira para fazer um lançamento tão corajoso é muito simples. "A média de público dos documentários brasileiros é de 2 mil espectadores. Alguns documentários musicais chegam a 20 mil. Realizadores como o Eduardo Coutinho e o João Salles conseguem atrair 30 mil pelo reconhecimento que os dois diretores têm. Se tivéssemos lançado esse filme apenas em salas de circuito de arte, a previsão é que alcançássemos apenas duas salas por cidade. Era muito difícil vender essa história sobre o interior do Brasil. Eu queria que o filme circulasse de uma maneira capilarizada. Que não se mantivesse entre o público de cinema letrado que lê o segundo caderno. As exibições em cineclubes realimentarima o circuito comercial por causa do boca a boca", raciocinou. "Eu entreguei o filme sem pudores", acredita o realizador sobre a completa falta de controle sobre a reprodução da obra. Aliás, essa é uma preocupação que ronda a iniciativa. O lançamento feito em cineclubes ainda não é lucrativo para os realizadores. Numa rede de discussão dentro do Cine Mais Cultura estão sendo estudadas maneiras de tornar a iniciativa rentável. "Existem várias formas e várias ideias. A gente pode imaginar o merchandising da tela ou a venda de produtos relacionados ao filme. Mas, a gente só vai conseguir coordenar essas ações nesse ano. Por enquanto, foi importante criar um fato com o Terra deu", antecipa Bouillet. Para saber mais A trapaça maravilhosa "Quem teve comigo foi o Guimarães Rosa. A construção teve muito da narrativa dele. Eu queria montar o filme do mesmo jeito que o Guimarães Rosa montava a narrativa dos livros. Ele a interrompe bruscamente e retoma por meio de uma surpresa. Os blocos se completam, não numa relação de causa e efeito, mas, como camadas que preparam para outra sequência. O jogo é construído de uma maneira não-linear. Eu queria que o espectador usasse a memória. A memória é uma coisa porosa, incompleta, a gente preenche com informação", relembra o documentarista Rodrigo Siqueira usando, ele mesmo, a prosa de Guimarães Rosa para explicar os processos do documentário Terra deu, terra come. Esse não é o único atrativo do filme que ganhou destaque entre os críticos por subverter estruturas vigentes no cinema documental desde os primórdios do cinema. "Eu queria entrar na subjetividade do Seu Pedro. Ele é uma figura magnetizante, um ator, um mentiroso, um contador de história perspicaz", define Siqueira. Juntos, realizador (Rodrigo Siqueira) e personagem (Pedro de Alexina), realizaram um pacto secreto e montaram uma história que, acima de tudo, entrega ao espectador o benefício da dúvida. A presença de Seu Pedro de Alexina é tão importante que seu nome figura como codiretor nos créditos do filme. O contador conduziu um dos desfechos mais interessantes dos documentários brasileiros dos últimos anos. "É um filme que não se resolve. O roteiro fecha um ciclo, mas abre para outras possibilidades", classifica Rodrigo. A artimanha que foi chamada de "uma trapaça maravilhosa", obviamente, não será revelada aqui.

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