Diversão e Arte

Espetáculo conta história de psiquiatra que levou a arte para pacientes

postado em 20/01/2011 08:00
Sozinha no palco, Mariana Terra interpreta Nise em várias fases da vida: peça mescla teatro, dança e vídeoA timidez e a estatura franzina não foram empecilhos para que Nise da Silveira (1906;1999), uma das primeiras mulheres médicas do país, revolucionasse a psiquiatria. Ao se embrenhar na psiquê humana, ela criou um método de tratamento mais humanizado para pacientes psiquiátricos, abolindo eletrochoques e torturas físicas e introduzindo a arte como forma de expressão para portadores de transtornos mentais. A história visionária dessa mulher que conheceu o horror da prisão, manteve correspondência com Carl Gustav Jung e se transformou em personagem literária inspirou o ator e diretor Daniel Lobo a criar uma versão de sua trajetória para os palcos. A peça Nise da Silveira ; Senhora das imagens faz sua estreia nacional na Caixa Cultural Brasília, de hoje a domingo.

Lobo estava lendo jornal em um café e se deparou com a notícia de que Nise havia morrido 10 anos antes. Ali mesmo, teve o insight de que deveria contar a história dela. ;Não queria fazer um texto didático. A montagem tinha que ter um discurso pessoal e a intérprete deveria ter conhecimento sobre psiquiatria;, concluiu. Depois de dois anos burilando a ideia, escreveu um texto em que a interpretação deságua na dança, em vídeos interativos, no uso de fotografias e em uma trilha sonora inédita, criada pelo pianista João Carlos Assis Brasil.

Os colaboradores, por sinal, merecem um capítulo à parte. A delicada coreografia que se desenrola no palco foi criada por Ana Botafogo. A voz do psicanalista Carl Gustav Jung, que manteve uma extensa correspondência com a médica brasileira, pertence ao ator Carlos Vereza. O poeta Ferreira Gullar também surge, ao dar um depoimento em vídeo. ;Eles completam a outra faceta da dramaturgia, a emoção de lidar, o inconsciente, as sutilezas. É uma construção que busca um campo subjetivo, o mesmo aonde vão os loucos e os artistas quando se debruçam diante da criação;, revela o diretor.
Além de relatar passagens biográficas, a peça oferece um mergulho em profundidade no universo emocional de Nise, relatando sonhos que a inspiradora do projeto deixou registrados. ;Nise sempre transitou entre a ciência e a arte, para tornar a caminhada de quem sofre de distúrbios mentais menos angustiosa;, salienta Lobo. As famosas mandalas, que surgiram nos desenhos dos pacientes da psiquiatra, também serviram como fonte de inspiração. Para reproduzir o formato delas, a plateia será instalada no palco, em torno da peça. Cada sessão terá capacidade máxima de 100 espectadores. Depois da temporada brasiliense, a peça segue para o Rio de Janeiro.

Múltipla
Sozinha em cena, a atriz Mariana Terra dá vida a Nise, à mãe dela, à narradora da história e a médicos que questionavam seus métodos, entre outros personagens. Em alguns trechos, inclui depoimentos autobiográficos. Explica-se: a vida da atriz está atada por fios à trajetória da médica revolucionária. Seu pai, o psiquiatra italiano Rafaelle Infante, foi amigo e cúmplice de Nise na luta por tratamentos mais humanizados. ;Era muito pequena, mas me lembro de frequentar a casa dela. Me impressionava a quantidade de gatos que ela criava;, conta a atriz. O pai da artista, elo entre as duas, morreu aos 47 anos, mesma idade em que a médica perdeu o pai. Para completar, Mariana nasceu no Dia das Bruxas, 31 de outubro, data em que Nise morreu, anos depois.

A personagem é retratada em várias idades e, na velhice, surge representada pela máscara de uma bruxa, que a atriz ganhou de um diretor italiano de comedia de teatro. O presente ficava guardado na casa que ela herdou do pai, na Ilha Grande, litoral do Rio de Janeiro. Por ironia do destino, a propriedade da família foi uma das várias casas destruídas durante o deslizamento de terras que varreu a região, nos primeiros dias de 2010. Um dos poucos objetos que restaram intactos foi a máscara, que sai dos escombros de uma tragédia para iluminar os palcos e a trajetória de Nise da Silveira. ;Na comédia dell;arte, a bruxa é a transformadora. Quando cheguei perto da casa destruída, pensei na máscara e em como ela faria parte desse espetáculo que tinha na minha cabeça. Quando a encontrei e a levei para um ensaio, foi muito forte. A respiração muda, ela te leva a outro estado;, descreve Mariana.

NISE DA SILVEIRA ; SENHORA DAS IMAGENS
De hoje a sábado, às 20h, e domingo, às 19h, na Caixa Cultural (SBS Q. 4 Lts. 3/4; 3206-6456). Ingressos a R$ 20 e R$ 10 (meia). Não recomendado para menores de 16 anos.

Quem foi Nise da Silveira

Nascida em Maceió, em 1906, Nise foi a única mulher de sua turma na faculdade de Medicina, que cursou na Bahia e, nessa fase, dedicou-se a estudar as relações entre doença e pobreza. Depois de casada, mudou-se com o marido para o Rio de Janeiro e se aproximou da classe artística da cidade. Pouco depois, foi aprovada em um concurso para atuar no Hospício Pedro II, o mais antigo da América Latina. Contrária ao uso de violência nos pacientes, ela fortaleceu o movimento antipsiquiatria, que refutava todas as crenças sobre doença mental vigentes até então. Três anos depois, Nise foi delatada por uma enfermeira do hospital, por possuir livros marxistas em casa. Nos 18 meses em que ficou presa, conviveu com Olga Benário e com Graciliano Ramos, que a transformou em personagem do livro Memórias do Cárcere. Depois de solta, foi reintegrada ao serviço público e criou seu método de terapia ocupacional para pacientes, introduzindo a arte em suas rotinas. Essas telas passaram a ter valor clínico e também artístico, por reproduzirem mandalas. Intrigada com a recorrência delas na obra dos pacientes, ela estabeleceu vínculo com Jung, estudioso das mandalas. Para manter a obra de seus pacientes, ela criou o Museu de Imagens do Inconsciente, ainda em funcionamento. Também é atribuída a ela a valorização do vínculo emocional entre pacientes e animais. Nise morreu em 1999, aos 94 anos.

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