Diversão e Arte

Documentário estreia em Brasília depois de garantir indicação ao Oscar

postado em 29/01/2011 08:00

Vik Muniz no Jardim Gramacho: esperança em meio à misériaSebastião dos Santos, o Tião, não tem o carisma ou o poder de Lula, o ex-presidente. Mas não é por falta de disposição. Entre os catadores que trabalham no lixão de Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro, atua como um líder natural. Nas galerias de arte, faz as vezes de modelo na obra de Vik Muniz, um dos artistas brasileiros mais valorizados no mercado internacional. E não fica nisso. Em 27 de fevereiro, pode garantir uma conquista inédita para o país. Nem o sindicalista dos altíssimos índices de popularidade chegou tão perto de arrebatar Hollywood e trazer um Oscar. A biografia Lula ; O filho do Brasil foi ignorada na disputa entre produções estrangeiras. Mas Tião tem chances.

Na labuta desde os 11 anos de idade, o admirador do filósofo Friedrich Nietzsche é um dos protagonistas do filme Lixo extraordinário, que estreou ontem em Brasília. Produzido entre o Brasil e o Reino Unido, o longa-metragem provocou certa surpresa ao entrar na lista de indicados ao Oscar de melhor documentário. Há uma semana, o filme foi lançado nas salas de São Paulo e do Rio de Janeiro com reações mornas. A partir de agora, no entanto, tudo muda. O aval da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas deve acelerar a trajetória de um filme sobre as relações entre arte e engajamento social. A narrativa mostra a transformação de pensamento que Vik instiga em pessoas como Tião.

A aparência é de azarão. Mas ela engana. Na briga por um troféu, o longa concorre com títulos elogiados sobre soldados em guerra no Afeganistão (Restrepo), desastres ecológicos (Gaslândia), crises econômicas (Trabalho interno) e as provocações de um ás do grafite (Exit through the gift shop, leia matéria na página 3). Parece dureza, mas a equipe do filme nunca escondeu o otimismo: desde novembro, quando venceu o prêmio da Associação Internacional de Documentaristas (IDA), o trio de diretores apostava numa indicação. ;É uma prévia do Oscar. Muitas das pessoas que votam nesse prêmio também elegem os concorrentes à estatueta;, afirma João Jardim, que assina o longa com a britânica Lucy Walker e a carioca Karen Harley.

Antes do aceno da Academia, a trajetória de Lixo extraordinário (em inglês, Waste land) já chamava a atenção pela performance em festivais internacionais e nacionais. Em Sundance, o reino dos independentes, faturou o prêmio de público. Na mostra Panorama, em Berlim, também caiu no gosto da plateia ; mais um troféu garantido pelos espectadores, como aconteceria no Canadá (Hot Docs), em Maui, Durban, Vancouver, Amsterdã, Estocolmo e em Paulínia. Nada comparável, entretanto, com o holofote do Oscar. ;A indicação representa mais público para o filme. A proposta de conscientização será propagada. Fizemos o filme porque acreditamos nessa mensagem. Queremos que ela seja conhecida pelo maior número de pessoas;, afirma João, que competiu no Festival de Brasília de 2010 com Amor?

Sem vítimas

Rejeitar os estereótipos que cercam as atividades dos catadores também é uma meta da produção. ;Mostrar o papel dessas pessoas no ciclo do lixo é de grande importância;, reforça o diretor. A relação entre o artista plástico Vik Muniz e os trabalhadores anônimos do Rio azeitam o motor do projeto, que acompanha a criação de uma série de retratos compostos com material reciclável. Após selecionar o ;elenco; da exposição ; além de Tião, pessoas como José Carlos, Suelem e Isis ;, todos trabalham na produção de quadros que serão expostos em no Museu de Arte Moderna do Rio e vendidos no exterior. Apontar uma possibilidade de crescimento profissional para esses artistas recém-convertidos é uma das intenções de Vik, ele próprio um autor que venceu as limitações da pobreza.

Com trilha sonora do americano Moby, o filme investe num tom emotivo que, aliado a um formato convencional de narrativa, alterna as histórias dos personagens (entre elas, a do próprio Vik) à descrição de um processo criativo coletivo.

Coproduzido por Fernando Meirelles (de Cidade de Deus), o longa trata dos efeitos transformadores da arte com atenção para as agruras dos excluídos. ;Viver no Jardim Gramacho não é fácil. Mas o filme vê essas pessoas não como vítimas, mas como cidadãos;, observa João. Uma lição universal, portanto. Tião já pode ir preparando o discurso.

LIXO EXTRAORDINÁRIO

(Brasil/Reino Unido, 2010, 90min,
classificação indicativa livre). De Lucy Walker, João Jardim e Karen Harley. Em cartaz no Arco-Íris Liberty 2 às 14h, 15h45, 17h30, 19h15 e 21h. ***


Três perguntas // João Jardim


Como foi a experiência de dirigir um documentário a seis mãos?
O curioso é que cada diretor trabalhou separadamente, em períodos diferentes. O filme começou com a Lucy Walker. Ela fez a primeira viagem do Vik Muniz ao Jardim Gramacho e desenvolveu a ideia do projeto, que foi concebido pelo produtor britânico Angus Aynsley. Mas ela teve que sair para dirigir outro longa, Countdown to zero, e aí me chamaram. Fiquei sete meses no filme, cuidando de toda a parte que trata dos personagens e cenas da feitura das fotos. Depois da viagem a Londres, que aparece no filme, saí e a Karen, que era a montadora desde o começo, foi promovida a diretora. No fim, a Lucy voltou para fazer o corte final, num perfil mais internacional.

Mas seu olhar está no filme?

Acredito que sim. A ideia é muito forte e me interessa. É um filme sobre como a arte pode mudar a vida das pessoas. Muda tudo, até pelo dinheiro que envolve. Para mim, o interessante foi entrar no filme botando logo a mão na massa, dirigindo, sem me preocupar com as etapas iniciais. E o Vik é um cara inspirador. Eu teria colocado mais cenas do Vik na versão final. Também me senti atraído pela ideia de jogar luz nos catadores. Nos meus filmes, me aproximo dos personagens e cuido muito do lado estético. O Lixo extraordinário tem isso. É um filme bonito.

Com a indicação ao Oscar, quais são as expectativas para a carreira do longa?
No exterior, a trajetória do filme é muito boa, ele passou por muitos festivais, é muito elogiado. Mas ainda não tive nenhum retorno disso. É um tema urgente, tem todo um problema ambiental envolvido. O Lixo extraordinário tem uma humanidade que está nos meus outros filmes. Não sei nada ainda sobre os outros indicados, mas acho que ele tem chances no Oscar.

Conheça os outros indicados ao Oscar de melhor documentário

Exit through the gift shop, de Banksy

Surpresa entre os concorrentes, este curto-circuito entre ficção e documentário é uma ótima provocação sobre o valor da arte contemporânea. Assinado pelo misterioso Banksy, artista do grafite.

Gaslândia, de Josh Fox

Vencedor do Prêmio Especial de Júri em Sundance, denuncia o escândalo ecológico provocado pela exploração de um lençol de gás natural nos Estados Unidos.

Restrepo, de Tim Hetherington e Sebastian Junger
Favorito ao prêmio, acompanha as atividades de um pelotão americano no Afeganistão. No período de um ano, a equipe de filmagem mostra o cotidiano dos soldados.

Trabalho interno, de Charles Ferguson

Um filme-ensaio sobre as causas da crise econômica global de 2008. Especialistas em finanças, políticos, jornalistas e estudiosos discutem o tema.

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