Diversão e Arte

Paulo José e Ana Kutner mergulham na poesia e na vida de Ana Cristina Cesar

Ana C. é uma das poetas brasileiras mais contundentes do século 20

postado em 11/02/2011 07:41
Paulo José e Ana Kutner em peça Um navio no espaço ou Ana Cristina Cesar, de hoje a domingo, na Caixa CulturalEnquanto trabalharam na mesma emissora de televisão, o ator Paulo José e a poetisa Ana Cristina Cesar estabeleceram uma relação pouco amistosa. Encarregada de avaliar os textos da emissora, ela criticava constantemente o roteiro do programa Caso verdade, que Paulo, já um ator consagrado, dirigia. Nas reuniões de trabalho, em que ela desempenhava o papel de ;intelectual universitária metida a besta;, lembra o ator, os relatórios classificavam seu programa como superficial, simplório e inverossímil. Quando teve contato com A teus pés, único livro que a poetisa, conhecida como Ana C., lançou em vida, ele percebeu que sua algoz intelectual e a escritora brilhante eram a mesma pessoa. ;Mas ela morreu em seguida e minha ficha caiu: devia ter ficado amigo dessa figura maravilhosa;, lembra.

O ator encontrou uma maneira de reinventar sua relação com a poetisa: montou a peça Um navio no espaço ou Ana Cristina Cesar, que estreia hoje, às 20h, na Caixa Cultural (Setor Bancário Sul, Qd. 4, Lt. 3/4), com ingressos a R$ 20 e R$ 10 (meia). Após uma trégua dos palcos que durou nove anos, ele assina a direção e ainda atua ao lado da filha Ana Kutner. ;Na verdade, ainda não entrei de vez no palco. Quem está lá é minha filha Ana. Estou me aproximando;, relata o ator, que circula entre a coxia e as áreas laterais da cena, em uma natural interpretação de si mesmo, interagindo com a plateia. ;Sou o interlocutor, faço o jogo dramático;, esclarece.

Por meio de suas evocações e provocações, Ana C. surge em um cenário que remete à instabilidade. São pontes suspensas, cordas e espelhos distorcidos, revelando um pouco do universo interno, nebuloso e estilhaçado da poetisa. O texto de Maria Helena Kühner, que estimulou a dramaturgia de Walter Daguerre, pinçou praticamente todas as palavras dos poemas, diários e escritos pessoais da autora. Nas paredes, imagens, fotos e poemas são projetados. ;Quando a peça estava quase pronta, fomos apresentados ao livro Antigos e soltos: poemas e prosas da pasta rosa, que traz material manuscrito, textos datilografados por ela, correções de próprio punho. É muito pessoal e nos deu vontade de colocar esse material em cena;, revela Paulo José.

Atriz fascinada

Ana Kutner, a atriz, mergulhou no universo poético de Ana C. durante o processo de composição e se empolga ao falar de suas descobertas. ;Ela entrou na minha vida definitivamente. Seus poemas me surpreendem, é como se sempre estivesse lendo algo inédito. A obra dela me emociona;, relata. A atuação, que passeia por momentos marcantes da vida da escritora, como as temporadas na Inglaterra, a universidade e as fases de oscilações emocionais, precisa dar conta das muitas facetas de Ana C. ;Ela criava personagens, pseudônimos, tinha um humor muito particular;, revela.

O pai faz coro ao defender a importância da autora no contexto literário do Brasil. ;Ana C. era muito boa, crítica, inteligente, ácida e legítima. Parece que brigava com todo mundo porque não suportava a mesmice, a burrice que foi se instalando no país todo;, afirma Paulo José, consumidor de poesia há décadas e frequentador de saraus poéticos desde quando era um ator iniciante em Porto Alegre.

Durante a imersão que fez na vida da poetisa, ele acabou descobrindo episódios que desconhecia. Como o dia em que ela dirigia pela Avenida Niemeyer, na capital fluminense, e se atirou, com carro e tudo, no mar. ;Provavelmente, quando percebeu que estava se afogando, o impulso de vida foi maior e ela se salvou;, acredita.

Pouco depois, porém, Ana Cristina Cesar conseguiu driblar a vigilância da família e pôs fim à própria vida, em um episódio pungente. ;Naquela tarde, ela pediu para ir ao banheiro, tirou a roupa e passou sabonete no corpo. Depois correu em direção a sala e se atirou contra a janela. A enfermeira chegou a tocá-la, mas não conseguiu segurá-la, porque ela escorregou;, relata. O episódio está presente na peça, mas é tratado com delicadeza. Na primeira vez em que se encontraram no palco, pai e filha optaram por fazer um retrato da grandeza poética e da inquietude da alma de Ana C., sem carregar nas tintas da tragédia.

PARA SABER MAIS

Ana Cristina Cesar, Ana C., expoente da geração mimeógrafo: além de seu tempo

Relâmpago criativo
Nascida em 1952, a carioca era filha de um jornalista e sociólogo e de uma professora de literatura. Criada em um ambiente cultural, ditava poemas para a mãe desde a infância e, aos 7 anos, publicou versos em um suplemento literário. Em 1969, passou um ano em Londres, fazendo intercâmbio em uma escola para meninas. Ao retornar, formou-se em letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e emendou com um mestrado na universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Nessa época, suas poesias já haviam conquistado espaço em jornais, revistas e na imprensa alternativa, além de volumes mimeografados, o que valeu a essa turma da poesia marginal, composta por nomes como Cacaso, Chacal e Nicolas Behr, o título de geração do mimeógrafo. A visibilidade de seu trabalhou começou a ganhar fôlego em 1976, quando a crítica literária Heloísa Buarque de Hollanda a incluiu na antologia 26 poetas hoje. Quatro anos depois, após uma temporada de estudos na Inglaterra, Ana tornou-se mestra em teoria e prática da tradução literária pela Universidade de Essex.

Na volta ao Brasil, já enfrentando graves crises de depressão, foi contratada pela Rede Globo para fazer pesquisas e análise de texto de telenovelas, época em que entra em contato com o diretor e ator Paulo José. Tenta suicídio em outubro de 1983, mas sobrevive e é internada em uma clínica. Dias depois, em 29 de outubro, atira-se do edifício onde os pais viviam.

; Poemas// Ana C.

Olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue nas gengivas

;É sempre mais difícil ancorar um navio no espaço;

;Diálogo de surdos, não: amistoso no frio. Atravanco na contramão. Suspiros no contrafluxo. Te apresento a mulher mais discreta do mundo: essa que não tem nenhum segredo.;

;Pergunto aqui se sou louca Quem quer saberá dizer Pergunto mais, se sou sã E ainda mais, se sou eu Que uso o viés pra amar E finjo fingir que finjo Adorar o fingimento Fingindo que sou fingida Pergunto aqui meus senhores quem é a loura donzela que se chama Ana Cristina E que se diz ser alguém É um fenômeno mor Ou é um lapso sutil?;

;Tenho uma folha brancae limpa à minha espera:mudo convitetenho uma cama brancae limpa à minha espera:mudo convitetenho uma vida brancae limpa à minha espera:;

;Tenho ciúmes deste cigarro que você fuma Tão distraidamente.;

Um navio no espaço ou Ana Cristina Cesar

Texto de Maria Helena Kühner e dramaturgia de Walter Daguerre. Direção de Paulo José. Com Ana Kutner e Paulo José. De hoje a domingo, no Teatro da Caixa (SBS Qd. 4, Lt. 3/4 ; 3206-9448). Hoje e amanhã às 20h e domingo, às 19h. Ingressos a R$ 20 e R$ 10 (meia). Não recomendado para menores de 14 anos.

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