Diversão e Arte

Diretores reafirmam, em Brasília, o sucesso da peça Resta pouco a dizer

Ricardo Daehn
postado em 14/02/2011 07:58

;As peças mostradas são acessíveis, a quem quer que respire;, detectou o músico João Monteiro, ano fim do programa Resta pouco a dizer, que, exibido em Brasília (depois de boa acolhida em São Paulo), integra três peças de Samuel Beckett (Catástrofe, Ato sem palavras II e Jogo) e três performances assinadas pelos irmãos Adriano e Fernando Guimarães. Interessado na ;pesquisa da alma humana;, João Monteiro se esbaldou: ao som de uma campainha que sistematizava ações à la Pavlov de 13 atores, o palco do Teatro Plínio Marcos (na Funarte) deu base a minimundo cênico povoado por personagens multifacetados, fossem intransigentes, caprichosos, inertes, displicentes ou insatisfeitos. Como apoio ao universo cênico, que revezava caos e ordem, objetos como baldes, sacos (usados como casulos) e até dois aquários (com 800 litros de água) despertavam a atenção dos quase 200 interessados, na plateia.

Cena de Ato sem palavras II, de Beckett;A fisicalidade do teatro do Beckett me encanta;, observou a atriz Valéria Rocha, preparadora vocal dos colegas. Nos bastidores, ela cuidava dos últimos ajustes no treino respiratório, na ressonância e na dicção, particularmente do trio que compõe Jogo (1962), com exigências sobre-humanas para uma cena, feita em rompante de 15 minutos. ;Vou com eles até ao limite. Os espetáculos são luz, escuridão e uma respiração muito profunda;, definiu o técnico Josenildo de Sousa, habitué da trupe dos Guimarães.

Na coxia, diante de tanta demanda, Adriano Guimarães certificava-se dos equipamentos de segurança para os encenadores. ;Às vezes, o ator fica numa situação-limite, com os personagens;, comentou Bruno Torres, o mais experiente ator em cena. ;Sigo a disciplina do teatro, ainda mais reforçada: pelas cenas de submersão, me alimento com antecedência, controlo o nervosismo eterno de estar no palco e trato de oxigenar o cérebro. Fazer Beckett é compor bem a imagem, tudo é muito sugestivo;, comentou.

Num diálogo com as obras do cultuado irlandês ; de texto objetivo e pensamentos entrecortados, que legitimaram parâmetros para o teatro do absurdo (ao lado de Eug;ne Ionesco), com enfoque para a nula importância do indivíduo ;, Adriano Guimarães conta que percebe, como criador, ;um espaço limitado, mas infinito;. ;Beckett é um autor extremamente rigoroso em relação à dramaturgia dele. Nada convencional, ele reduz e resseca palavras e gestos. Na sintaxe da cena, com o tempo dilatado, ele indica atuações hiperdimensionadas. Como numa lente de aumento, qualquer movimento fica potente;, explica o diretor, eterno parceiro do irmão Fernando Guimarães.

Os caras
Depois dos risos em coro, pela identificação mantida com alguns personagens, a pedagoga e atriz Aline Cacau tinha o veredicto: ;Os Guimarães são os caras. Achei maravilhoso e surpreendente;. Namorada há três meses do administrador Leonardo Gomes, Aline arrebanhou promessas de regresso ao teatro, depois que Leonardo acompanhou o primeiro espetáculo. ;Gostei muito da desenvoltura dos atores e vou voltar;, disse. Isabel Monteiro, estudante de direito no Iesb, gostou do que viu. ;Tudo foi muito criativo e diferente. Com poucos elementos de palco, eles fizeram contrastes bem intensos;, comentou. A administradora Iraquemes Arsolino achou os atores excelentes, e acrescentou: ;É uma crítica à rotina da modernidade e que mostra como o homem está preso;.

Ainda nos bastidores do espetáculo, concentração, tensão, alongamento e esforço físico se materializavam no ator brasiliense Leandro Menezes, 25 anos. Exigido em Respiração mais e Ato sem palavras II, ele conta que teve um mês para colorir o ;monólogo corporal; de Ato, calcado no cotidiano de um homem perfeccionista ;que prima pela precisão, sem ser violento ou afobado;. No próximo fim de semana, com a reprise das peças (no mesmo local), Leandro estará a postos para atender, de novo, à ;milimétrica coreografia; de Resta pouco a dizer.

Papo de oficina


Reunidas na programação do projeto Resta pouco a dizer, as oficinas Sujeito menos: o intérprete na cena beckettiana e A palavra e a imagem: análise e leitura de Esperando Godot mobilizam, paralelamente às peças, atores e anônimos, todos prontos a dissecar as ideias do autor morto em 1989. O auxílio vem dos professores Adriano e Fernando Guimarães, especialistas no dramaturgo.

;Beckett proporciona uma relação de mudanças com o fazer teatral e cada pessoa sai com uma opinião diferente sobre o que foi lido e interpretado;
Otávio Salas, ator de Catástrofe e Respiração embolada

;Na primeira leitura da oficina, o clima estava bem tenso: Beckett é um autor muito profundo e os irmãos Guimarães são as nossas referências de teatro na cidade. É uma ituação complexa;
Graziela Bastos, bailarina e aluna de A palavra e a imagem: análise e leitura de Esperando Godot

;Senti muita dificuldade na leitura solitária que, com a oficina, ficou muito mais acessível e palpável. A obra dele traz temas que a gente evita, no dia a dia, como morte e a lida com perdas;
Rafael Justos, produtor cultural

;Beckett abre um leque enorme de visões e dúvidas. Na estrutura da obra, há formas em espiral e também cíclicas. É um caldeirão de dúvidas, soluções ou pendências;
Wilson Granja, bancário e estudante de artes cênicas

;Ele mostra que teatro é bem amplo e muito maior do que eu imaginava. Beckett ensina como ser uma pessoa melhor, a cada dia;
Eduardo Jaime, ator amador

ENTREVISTA // Fernando Guimarães


Até onde é possível interferir nas criações de Samuel Beckett e o que motiva as encenações?

A gente escolheu ele, pelo teatro visual. É um autor que abrange a palavra, tornada um componente tão importante, no palco, quanto a luz e a cenografia. Nós (o Adriano e eu) criamos uma dramaturgia visual, como uma marca própria. Mas, ainda assim, optamos por seguir um ressecamento absoluto. Não tem nada no cenário que não seja essencial ou que desvirtue a linguagem. No Jogo (1962), em que três cabeças, aparentemente, discutem uma relação amorosa, seguimos a indicação dele: "três cabeças falam". Não se tem nada a mais, no cenário. Não pretendemos ter uma espetacularização da imagem.

O que garante que o público, sem ser o da classe artística, também esteja contemplado pelos espetáculos?

As peças geram interesse em todo mundo. Elas sempre trazem componentes curiosos. Em São Paulo, por exemplo, tivemos lotação do teatro, em seis ocasiões da temporada. O espetáculo pegou, pela propaganda do boca-a-boca. Os estudiosos até veem as obras, por meio de outro viés, ; mas, fizemos o material para o público, sem nos interessarmos por nichos. Daí, os níveis diferentes de entendimento. Independente da compreensão, as obras chegam nas pessoas. Às vezes, há quem se esforce para buscar um significado oculto, mas Beckett trata de coisas simples.

Qual a proposta das curtas peças reunidas?

O autor trata de impossibilidades: é como se não fossemos donos do nosso tempo e como se nossas decisões não nos pertencessem. O Resta pouco a dizer integra um teatro de variedades, em que são muitos atrativos, numa única ocasião. Em termos de tema, há quem veja poesia no Beckett, mas até isso vem de forma seca. Mesmo simples, o universo dele é denso. Em Jogo, há um bom exemplo: no palco, está uma dita relação entre três pessoas, mas elas nunca alcançam a comunicação. Falam, por si, e sem a participação do outro.

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