Ricardo Daehn
postado em 15/02/2011 08:30
Se definido, apressadamente, por algumas excentricidades ; como a de tomar o papel de atores nas produções que desenvolve e se comparar (sem arrogância) ao cultuado colega Jacques Tati ;, o diretor parisiense Luc Moullet poderia ser tomado por um fanfarrão pretensioso. Ledo engano: de sólido embasamento teórico ; ele não só participou do florescimento da Nouvelle Vague, como ainda foi crítico influente na celebrada Cahiers do Cinéma ;, Moullet, absolutamente desconhecido no Brasil, se estabeleceu como um provocativo realizador dono de estilo cômico bem pessoal.;É um diretor para ser levado muito a sério. Em todos os seus filmes, ele discute a realidade social com muito humor, mas talvez sejam alguns documentários como O ventre da América (1996), Foix (1994), Os Havres (1983) e Imphy, a capital da França (1994) que melhor concentrem e explicitem as mazelas da sociedade;, avalia Rafael Sampaio, um dos curadores (ao lado de Francisco Cesar Filho) da mostra Luc Moullet, Cinema de Contrabando. Realizadas, paralelamente, nas unidades do Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, as exibições de 41 filmes estão complementadas pelo encontro com o diretor que, aos 74 anos, está muito disposto a conversar com o público brasileiro. Em Brasília, ele estará na próxima quinta-feira.
;Os primeiros filmes dele, como Brigitte e Brigitte (1966) e As contrabandistas (1967), contêm marcas da Nouvelle Vague, principalmente na vontade de romper a qualquer custo com as normas e códigos estabelecidos pelo cinema comercial e pela referência ao cinema B norte-americano e a predileção pelo cinema de gênero;, comenta Rafael Sampaio. Com o apoio do Centre George Pompidou ; que em 2009 organizou uma homenagem ao diretor ; e auxílio da Embaixada da França, foi possível reunir todos os filmes para apresentação da retrospectiva completa, que traz até três títulos finalizados no ano passado.
Além das fitas autorais, estão programados O homem da ravina (de Gerard Courant), um documentário em torno de Moullet, a partir da ambiência que ele emprega, e Vontade indômita (1949), filme de King Vidor (do clássico Duelo ao sol) inspirador de um livro do crítico e que será exibido em cópia 35mm saída do acervo londrino do British Film Institute. Fluindo nos mais variados suportes, que vão da bitola 35mm a 16mm, passando por beta e pelo aparato digital, a produção agrega muitos títulos em curtas e médias-metragens. ;Alguns filmes dele são deliberadamente de produção precária, mas nunca acatam linguagem que siga essa linha. É provavelmente uma escolha do diretor, não somente pelos baixos orçamentos ou dificuldades enfrentadas, mas principalmente pelas próprias referências valorizadas por Moullet;, comenta Sampaio.
Falso narcisismo
Um dos grandes interesses do francês é pela direção de atores, tanto que, entre as obras teóricas, escreveu Politique des acteurs (Política dos atores, 1993), ainda inédito no Brasil. Sem denotar o narcisismo, com forte persona, Moullet, que, jocosamente, já assumiu que prefere representar papéis nos filmes para ;poupar trabalho e burocracia;, associa a imagem dele representando a si mesmo em filmes como em Anatomia de uma relação ( 1975) e O prestígio da morte (2007). A exposição, no primeiro, rendeu um chiste sobre a possibilidade de reencenar (com a atriz Marie-Christine Questerbert) verdadeiros entraves sexuais com a esposa (a também atriz Antonietta Pizzorno), enquanto o segundo se apoia na oportunidade cavada pelo cineasta de forjar a morte dele, a fim de que a mídia revalorizasse a obra criada e, como reflexo, revertesse em financiamento facilitado para o próximo filme.
Ainda ativo no set, com relativa regularidade, o cineasta alterna a escrita como crítico (que já rendeu análises sobre as obras de Fritz Lang, Jean-Luc Godard e Catherine Breillat) com a atividade acadêmica. ;Nos últimos anos, ele vive a celebração da obra produzida, já que uma caixa com DVDs que integram a sua filmografia foram lançados na França e nos Estados Unidos. Além disso, ele ganhou retrospectivas em festivais e centros culturais importantes mundo afora;, conclui Rafael Sampaio.
Luc Moullet, cinema de contrabando
Centro Cultural Banco do Brasil (SCES, Tr. 02, Lt. 22, 3310-7087). De hoje a 6 de março. Hoje, às 19h, exibição dos curtas-metragens Obra-prima? e Jean-Luc segundo Luc, além do média O homem da ravina (de Gerard Cournat). Às 20h30, apresentação do longa As contrabandistas (1967). Não recomendado para menores de 14 anos . Entrada franca.
Olhar ácido
Gênese de uma refeição
(1978, 117min) ; Antes mesmo da certidão oficial do nascimento da globalização, o diretor já escancarava as funções reservadas aos países, na estratificação desigual que desalinha nações fornecedoras de matéria-prima e aquelas à frente da industrialização. O registro da fusão entre atum, banana e omelete, num cardápio, ilustra o desequilíbrio entre os trabalhadores das diferentes nações.
Catracas
(1983, 14min) ; Um tanto longo, mas divertido ensaio que revela todas as artimanhas ao alcance dos trapaceiros usuários do metrô em Paris. Sem palavras, Moullet consegue calibrar um humor físico que reposiciona a função das catracas do metrô: agora, elas servem aos saltos com barreiras dos cidadãos que se julgam mais espertos.
Cada vez mais
(1994, 24min) ; Sem muita conversa, ou praticamente nenhuma, o diretor capta as situações corriqueiras (e a trapaça de alguns consumidores) nas edificações que ele toma como meca do consumo desmedido atual: os supermercados.
Obra-prima?
(2010, 13min) ; O brasileiro Jorge Furtado (especialmente por meio do curta Ilha das Flores) ganha larga exposição no filme que discute os parâmetros e a ausência de fórmulas certeiras que possam vir a consolidar o padrão de excelência das obras artísticas.
A valsa da mídia
(1987, 27min) ; O choque entre arcaico e moderno e o distanciamento ocasionado na implementação de métodos avançados para catalogação e uso de bibliotecas é o cerne da fita. Nem tudo, porém, trilha o percurso acadêmico e pomposo. Muito pelo contrário.