Diversão e Arte

Artista gráfico Nássara ganha biografia escrita por Carlos Didier

Severino Francisco
postado em 22/02/2011 09:01

Ilustração Sinhô, década de 1990: Ao caricaturar os personagens, Nássara tentava traduzir a alma deles no traço

Na década de 1930, os craques do samba e das marchinhas de carnaval elegeram o Café Nice, situado na Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, como ponto de encontro. Só com muita boa vontade seria possível dizer que eram fregueses exemplares. Todos viviam duros, sem dinheiro para mais do que uma refeição. De vez quando, um deles pedia um café e se armava a cena imortalizada no samba Conversa de botequim, de Noel Rosa, um dos frequentadores do Nice. O garçom perguntava: ;Mais alguma coisa?; E eles respondiam: ;Sim, um palito, estou esperando um amigo para ver se ele paga.; Aparecia o cantor Francisco Alves, o único remediado da turma, pois sempre estava envolvido com a compra de sambas: ;Chico paga aqui!” O sovina ficava bravo: ;Está pensando que é meu filho?; E eles não se apertavam: ;Garçom, vamos ter de esperar outro amigo.; E havia tempo, pois no fim da tarde, era servida uma sopa com hortelã, acompanhada de um pedaço de pão: ;Garçom, por favor, mais um palito.;

Com uma colagem de histórias deliciosas como essa, o engenheiro, escritor e músico Carlos Didier compôs a biografia Nássara passado a limpo (Ed. José Olympio). Didier retratou Noel Rosa (em parceria com João Máximo) e Orestes Barbosa: ;Lamartine, Noel Rosa e Nássara eram elegantes por causa da dureza;, comenta. Era uma vida barata, elegante e divertida, cheia de música, desenhos e muitas virações para sobreviver. Nássara (1909-1996), carioca, filho de libaneses, era um craque do traço e da música e deu forma ao espírito bem-humorado do Rio de Janeiro. Com seu impressionante talento para a síntese, as suas caricaturas já nasciam clássicas, pois são logotipos da alma. E o mesmo ocorria com as marchinhas de carnaval que captavam a música das ruas como é o caso de Alaô, Mundo de zinco, Formosa ou Balzaqueana: ;O seu processo de criação de canções e de desenhos é muito parecido. Pegava trechos de óperas com intenções satíricas.;, comenta Didier.

Não ganhava quase nenhum dinheiro nem com uma atividade nem com outra. O que garantia a sua sobrevivência era o trabalho de diagramação e paginação de jornais e revistas. Trabalhou em A Crítica, o jornal da família Rodrigues, com Mário Rodrigues, Mário Filho, Nelson Rodrigues e com dois excelentes artistas gráficos, o paraguaio Guevara, e o mexicano Figueiroa, aprendendo muito sobre a arte do traço. Os desfiles das escolas de samba nasceram na redação de A Crítica, em 1931, quando terminou o campeonato carioca, o América sagrou-se campeão e o jornal ficou sem assunto. Um repórter chamado Carlos Pimentel sugeriu que o jornal promovesse um concurso de samba e, com o seu gênio para o marketing, Mário Filho pegou no ar a ideia e apostou mais alto, instituindo uma disputa entre as escolas de samba dos morros. Nelson Rodrigues foi escalado para fazer a manchete com urgência e enviou o título para Nássara diagramar: ;A alma sonora dos morros descerá para a cidade.; Sem gastar um centavo, A Crítica transformou o desfile das escolas de samba em uma apoteose.

Mentalização
Ao caricaturar os personagens, Nássara tentava traduzir a alma deles no traço. Em 1929, ele usava fotografias como ponto de partida para sucessivas deformações. Mas, a partir de 1930, contou a Didier que passou a trabalhar com um processo chamado mentalização. ;Ele mentalizava primeiro e só depois pegava no lápis;, observa Didier. A caricatura de Machado de Assis revela muita tristeza, mas um olhar atento e desconfiado de quem vê a vida como ela é. Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, era conhecido como paquerador de mulheres, mas Nássara o desenhou como um bebê nas nuvens. ;É engraçado, pois, conversando com a filha do Sérgio, ela me disse que ele nasceu e morreu na casa da mãe, sempre viveu paparicado pelas mulheres.;

Nássara era desatento com glórias e muito atento às amizades. Tornou-se amigo de Didier ao saber que ele estava realizando uma biografia sobre Noel Rosa. ;Isso é comovente e coloca Nássara muito longe do nosso tempo, marcado pela preocupação com o marketing pessoal;, comenta Didier ;Para Nássara, elogio em boca própria era vitupério. Mas, hoje, a maioria não sabe mais o que é vitupério.; Um mês antes de sua morte, ocorrida em em 17 de setembro de 1996, aos 87 anos, a turma do Pasquim festejou o seu aniversário com um almoço. Nássara agradeceu às novas gerações pelo reconhecimento e aos deuses pela graça de ter ficado surdo e, portanto, livre das ;músicas modernas;.

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