O corpo doente, desarranjado e posto sobre o tênue fio entre a vida e a morte remexia, como um liquidificador, a sensibilidade do médico sanitarista Moacyr Scliar. Desde o tempo da faculdade, mesmo diante dos cadáveres de laboratório, a fragilidade do ser humano revirava a cabeça do jovem idealista que queria fazer medicina social. Esse impacto era tão potente que delineou a trajetória assim que repetiu o juramento para salvar vidas. Correu para a saúde pública e foi atender os desassistidos da grande Porto Alegre. Ali, deparou-se com um devorador de sonhos. Lutou bravamente contra a tuberculose, um mal que persistia firme no século 20. Fez desse ofício o aprendizado para se tornar um homem capaz de lidar, às vezes no mesmo segundo, com a dor e a esperança.
; Na doença, o ser humano se desnuda, deixa cair todas as máscaras. É uma experiência intensa, tanto para o médico quanto para o doente. Creio que é isso que acaba conduzindo o médico à literatura, disse Scliar à série A arte de escrever, publicada no Correio, em 1997.
Desde 17 de janeiro, quando foi acometido por um AVC, Moacyr Scliar olhava, com intimidade, para a morte. Inconsciente, numa UTI, o escritor de 73 anos ficou diante da fatalidade, que veio na primeira hora do domingo, por falência múltipla dos órgãos. O homem morreu, mas o escritor deixa legado literário vivo que marcou fortemente a literatura brasileira na segunda metade do século 20: contos curtos e mordazes, romances, novelas, crônicas, ensaios, livros infanto-juvenis. O enterro será realizado hoje, às 11h, no Cemitério Israelita de Porto Alegre.
A obstrução de uma artéria no cérebro interrompeu um dia a dia dedicado às palavras. A medicina continuava ali, misturada e presente às ideias que fertilizavam, por exemplo, a coluna quinzenal publicada às terças-feiras, no Correio. Era o pensamento latente para criticar, apontar experiências e emancipar os leitores. Homem de fé na vida, Moacyr Scliar acreditava na educação como um Deus e via a redenção do Brasil pelos livros.
[SAIBAMAIS]; As estatísticas mostram que os brasileiros estão lendo mais. Tem regiões, como o Sul, por exemplo, que leem muito. A ideia de que o jovem não lê, por exemplo, é inteiramente equivocada. O jovem não lê se não é motivado. Se a leitura é transformada em uma obrigação curricular, questão de exame e só para passar de ano, aí ele não pode ter vontade de ler. Agora, se a leitura representa um convite ao prazer, à emoção, a uma vivência diferente, aí certamente ele leria, contou o escritor na última entrevista que concedeu ao Correio, em março de 2010.
Filho de judeus russos, Scliar foi alfabetizado pela mãe-professora, dona Sara. O pai, seu José, imigrante, reconstruiu a vida no Brasil, com a família de nove irmãos.
Chegaram, em 1914, assustados e cheios de esperança. Fugiram para não serem mortos em massacres aos judeus promovidos pelo sangrento czar. Em Porto Alegre, moravam no bairro de Bom Fim. O ambiente era simples. Uma casinha, como carinhosamente Scliar costumava dizer, sem água quente para enfrentar os invernos rigorosos da capital gaúcha, nem fogão a gás. Também não tinha banheiro. De empregado de fábrica, seu José virou sócio de pequena empresa de acolchoados.
; Nós vivíamos precariamente, mas nunca sofri com isso. O fato de ser um bairro comunitário, em que as pessoas conviviam muito umas com as outras e se ajudavam, acho que neutralizava um pouco essa sensação de desamparo que a pobreza tem. Depois, melhoramos de vida e passamos a ter um padrão de classe média, contava.
Medo da morte
O contato de Moacyr Scliar com a educação e a medicina é o tempo de menino no bairro de Bom Fim, em Porto Alegre. O menino morria de medo que os pais morressem. Tinha horror de doenças e ficava desesperado quando eles caíam enfermos na cama. Passou a ler muito sobre medicina e tirava dúvidas com um médico do bairro, Dr. Maurício. Passava horas em torno dos livros ; Monteiro Lobato e Erico Veríssimo, sobretudo.
; Na nossa casa podia faltar comida, mas livro não faltava.
O clã Scliar tinha o costume de se juntar aos vizinhos para contar histórias. O menino se prostrava na roda e pegava carona nas narrativas. Tinha uma profunda admiração por todos ali. Uma boa parte dos tios era fortemente ligada à cultura: Carlos era pintor; Salomão, fotógrafo; Ester, compositora; e Leonor, professora. Nessa época, já era apontado, pelas ruas de Bom Fim, como o menino-escritor. Aos 7 anos, resolveu escrever uma autobiografia em papel de embrulho de pão. Frustrou-se porque toda a história de vida não cabia em meia folha. As primeiras linhas são premonitórias:
; Quando eu nasci, correu pela vizinhança que eu me chamaria Moacyr.