postado em 28/02/2011 07:47
;Como um cavalo alado, prestes a alçar voo, rumo à montanha do riso eterno, o seio de Abraão. Como um cavalo, na ponta dos cascos, pronto a galopar pelo pampa. Como um centauro no jardim, pronto a pular o muro, em busca da liberdade.;Assim o gaúcho Moacyr Scliar põe o ponto final em seu romance mais traduzido e premiado, O centauro no jardim, de 1980, situado por especialistas em literatura entre as 50 melhores narrativas longas de língua portuguesa, colocado ombro a ombro nas prateleiras do mundo com títulos de ícones da criação romanesca, a exemplo de Graciliano Ramos, Eça de Queiroz, Machado de Assis e Guimarães Rosa. Assim o gaúcho que se indagava um ser em liberdade e humano antes de tudo, demasiadamente humano, despediu-se, ontem, de suas histórias de humor, amor, denúncia e vida.
Se há uma obra entre as escritas pelo autor de Saturno nos trópicos e de O tio que flutuava que funciona como uma súmula entre todas as que levam a sua assinatura ou ao menos das principais, esta é O centauro. É provável que, ao longo dos últimos 30 anos, Scliar tenha buscado se superar ; em forma e conteúdo ; para além desse romance de pura alegoria e realidade, se é possível esse estranho binômio assim surgir sem merecer explicações filosóficas. Mas também é provável que não tenha conseguido, o que não faz a mínima diferença em termos de tentativa, de imprimir-se aqui um peso em sua escalada literária. Alguém que escreve livros como O ciclo das águas e O exército de um homem só (1973) não precisa se esforçar para se superar em nada.
A obra de Moacyr Scliar surge há meio século no panorama da literatura brasileira de temática urbana (e até mesmo rural) como uma escrita de renovação do gênero nas décadas de 1960 e 1970, em pleno domínio da repressão militar. Configurada em chaves simbólicas e erguida sobre um veio de metáforas das mais ricas no ideário político e social da literatura brasileira contemporânea, pode-se afirmar que existe apenas um tema central na bibliografia de Scliar ; o judaísmo.
[SAIBAMAIS]A partir desse elemento temático, calcado em profundas raízes hebraicas na busca de um Abraão do Velho testamento ressuscitado em vários personagens modernos (vide o Capitão Birobidjan, de O exército de um homem só; e Esther, de O ciclo das águas) ; como aqueles que serão em um só nome o eterno pai de todas as raças e o que mostrará ao homem o caminho da liberdade ;, o médico escritor nascido no bairro do Bom Fim, reduto judaico de Porto Alegre, concentra-se na construção de diversos subtemas cifrados nas questões social, da identidade e da diáspora. E aqui, ressalte-se com todas as tintas, não importa se esse fala da dispersão de povos judeus ou de indígenas em deslocamento, de afro-brasileiros ou de fanáticos de ascendência islâmica.
Segundas intenções
Desde O carnaval dos animais (título da obra sinfônica do francês Camille Saint-Sa;ns que inspira o gaúcho na construção de um novo zoológico musical. O de Saint-Sa;ns começa com o leão e termina com o cisne, como símbolos de bravura e de leveza), de 1968, Scliar funda uma literatura dedicada a subverter os padrões estatuídos da época ainda de matiz realista no Brasil e a renovar um fabulário de longa tradição ; com ecos de um La Fontaine, de um Esopo, ou dos irmãos Andersen, do folclore brasileiro ; para poder falar de ditadura, de racismo, de fobias, perseguições, desumanidade.
;Uma vez me perguntaram o que eu queria dizer com o meu livro de estreia, O carnaval dos animais. Eu disse que estava falando sobre a censura, sobre a ditadura, sobre a violência. Parecia que aquilo não ia acabar nunca. Mas acabou, ainda bem;, disse Scliar em depoimento ao Correio, em março de 1989, para a reportagem Queima de arquivo, o último ato da censura sobre os fantasmas do regime de exceção. À época, a Polícia Federal criara comissões de incineração para queimar os pareceres dos censores sobre filmes, peças de teatro, músicas e literatura, o que não ocorreu.
Na verdade, o autor de A majestade do Xingu, de 1997 ; obra em que homenageia Noel Nutels, o sanitarista judeu de origem russa e o estilo roseano de escrever ; sempre esteve às voltas com o medo, a paranoia, o trauma da perseguição, pela sua própria história familiar, pelo seu ethos ancestral de pertencer a um povo historicamente agredido, violentado e explorado, pelo fato de ser judeu e como o Shylock, de Shakespeare, a quem dedica o conto O doutor Shylock, que está em O carnaval, ser forçado a viver se esquivando da discriminação dentro e fora da realidade, dentro e fora da história.
Benedito Nunes, filósofo
; Morreu, ontem, aos 81 anos, o professor, filósofo, crítico literário, ensaísta e escritor Benedito Nunes. Apontado como um dos principais filósofos brasileiros da atualidade, o paraense era também professor emérito da Universidade Federal do Pará (UFPA) e uma das figuras ilustres do estado, defensor da Amazônia e homem apaixonado por Belém. Recentemente, ele recebeu o Prêmio Jabuti de crítica literária por Clave poética e o Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra. O corpo será cremado, às 11h, no cemitério Max Domini, localizado no município de Marituba (20km de Belém).