Em entrevista ao jornal New York Post, o autor contou que o livro começou a ser escrito na época do bicentenário do ex-presidente e da febre Crepúsculo. ;A ideia veio quando estava vagando por livrarias. Gosto de ver o que está nas prateleiras e, na época, parecia que uma nova biografia de Lincoln saía toda semana. Na mesma época, Crepúsculo estava estourando. Inevitavelmente, havia duas opções: numa, Lincoln, na outra, vampiros. Fiquei pensando como esses dois ficariam juntos. Então comecei a pesquisar a vida dele e achei pequenas lacunas nas quais poderia colocar vampiros;, disse.
Autor-personagem
A brincadeira literária inclui o próprio escritor no mashup, como os filmes mockumentary (ficção apresentada na forma de documentário, como Borat e Brüno) fazem com seus espectadores: deixam, por alguns instantes, uma sensação de que ficção e verdade não estão muito distantes. Na introdução, Grahame-Smith, então um escritor fracassado e funcionário de um mercadinho, em Rhinebeck, Nova York, recebe do misterioso Henry um pacote com cartas e livros encadernados.
Seth Grahame-Smith encontrou um bilhete: nele, Henry pede sigilo sobre o conteúdo dos papéis e o contrata para escrever um livro com base nos escritos. Ao se deter na primeira página do primeiro caderno, ele leu: ;Este é o diário de Abraham Lincoln;. Riu à beça. Mas depois levou o projeto a sério. ;A verdade é que o imponente mito de Abraham, o Honesto, arraigado nas lembranças de nossos primeiros dias na escola, é essencialmente falso. Nada além de uma colcha de retalhos de meias-verdades e omissões;, narra.
O escritor divide a narrativa em fragmentos extraídos do diário e interpretações dos depoimentos, numa prosa de sabor cinematográfico: ele cria uma farsa sobrenatural sangrenta e divertida, digna dos grandes blockbusters. Aliás, Caçador de vampiros já está em posse de Hollywood, sob os cuidados de Tim Burton e direção de Timur Bekmambetov (O procurado). Já Orgulho e preconceito e zumbis terá a vencedora do Oscar Natalie Portman como produtora. E os livros de Seth Grahame-Smith, olhares curiosos e interessados dos executivos de cinema. (FM)
Trecho do livro Abraham Lincoln: Caçador de vampiros, de Seth Grahame-Smith
Capítulo 1 - Criança excepcional
O menino estava agachado fazia tanto tempo que suas pernas haviam ficado dormentes ; ele, no entanto, não ousava se mexer agora. Pois ali, numa pequena clareira da floresta congelada, havia criaturas que ele há muito esperava ver. Criaturas que ele havia sido enviado para matar. Mordeu o braço para evitar que seus dentes batessem e fez pontaria com o rifle de pederneira de seu pai exatamente como lhe haviam ensinado. No corpo, lembrou-se ele. No corpo, não no pescoço. Tranquilamente, com cuidado, ele puxou o cão para trás e apontou o cano para o alvo, um macho imenso que ficara para trás do bando. Décadas depois, o menino se lembraria do que aconteceu em seguida:
Eu hesitei. Não por um conflito de consciência, mas por medo que meu rifle estivesse muito molhado, e assim não fosse disparar. No entanto, esse medo se provou infundado, pois quando puxei o gatilho, a coronha bateu com um tranco tão forte em meu ombro que eu caí de costas.
Os perus se espalharam em todas as direções enquanto Abraham Lincoln, aos 7 anos, levantou-se do chão coberto de neve. Pondo-se em pé, ele levou os dedos até o estranho calor que sentiu no queixo. ;Eu mordi o lábio;, escreveu ele. ;Mas não cheguei a gritar. Estava desesperado para saber se havia acertado o pobre-diabo ou não.;
Ele acertara. O macho imenso batia atabalhoadamente as asas, tentando se erguer através da neve em pequenos círculos. Abe observou a distância, ;receando
que ele pudesse conseguir se levantar e me fazer em pedaços;. O bater de asas; o arrastar das penas pela neve. Eram os únicos sons do mundo. Aliados ao som dos pés de Abe, que tomou coragem e se aproximou. As asas batiam com menos força agora.
Estava morrendo.
Ele havia acertado bem no pescoço. A cabeça pendia num ângulo pouco natural ; arrastada pelo chão enquanto o pássaro continuava a se remexer. No corpo, não no pescoço. A cada batida do coração, o sangue brotava da ferida e caía na neve, onde se mesclava às gotas escuras sangrando do lábio mordido de Abe e às lágrimas que já começavam a escorrer por seu rosto.
Ele arfava em busca de ar, mas não conseguia, e seus olhos exibiam uma espécie de medo que eu nunca vira antes. Fiquei de pé sobre o miserável pássaro durante o que me pareceu um ano, implorando a Deus que apaziguasse suas asas. Suplicando por Seu perdão por ter prejudicado uma criatura que não me fizera mal algum; nem representava nenhuma ameaça à minha pessoa ou à minha prosperidade. Por fim ele parou, e, tomando coragem, arrastei-o por mais de um quilômetro de floresta e depositei-o aos pés de minha mãe ; minha cabeça baixa de modo a esconder as lágrimas.
Abraham Lincoln jamais ceifaria outra vida. E, no entanto, se tornaria um dos maiores assassinos do século XIX.
O menino choroso não pregou o olho aquela noite. ;Só conseguia pensar na injustiça que fizera para com outra criatura vivente e no medo que vira em seus olhos enquanto a promessa de vida se esvaía.; Abe se recusou a comer aquilo que havia matado e alimentou-se praticamente só de pão, enquanto a mãe, o pai e a irmã mais velha deixaram a carcaça limpa nas duas semanas seguintes. Não existem registros da reação deles a essa greve de fome, mas deve ter sido vista como uma excentricidade. Afinal, passar voluntariamente sem comida, como uma questão de princípio, era uma opção notável para qualquer pessoa naquela época ; especialmente para um menino que havia nascido e fora criado na fronteira norte-americana.
Mas, enfim, Abe Lincoln sempre fora diferente.
A América ainda vivia sua infância quando o futuro presidente nasceu, no dia 12 de fevereiro de 1809 ; meros trinta anos após a assinatura da Declaração de Independência. Muitos dos gigantes da Revolução Americana ; Robert Treat Paine, Benjamin Rush e Samuel Chase ; ainda estavam vivos. John Adams e Thomas Jefferson só retomariam sua tumultuada amizade dali a três anos, e só viriam a morrer 17 anos depois ; incrivelmente, no mesmo dia. Quatro de julho.
Essas primeiras décadas norte-americanas foram tempos de crescimento e oportunidades aparentemente ilimitados. Na época em que Abe Lincoln nasceu, os moradores de Boston e de Filadélfia haviam visto suas cidades duplicarem de tamanho em menos de vinte anos. A população de Nova York triplicara durante o mesmo período. As cidades estavam se tornando mais agitadas, mais prósperas. ;Para cada sitiante, há dois comerciantes de miudezas; para cada ferreiro, um teatro de ópera;, brincava Washington Irving em seu jornal nova-iorquino, o Salmagundi.
Porém, conforme as cidades se tornavam mais populosas, tornavam-se também mais perigosas. Como seus equivalentes em Londres, Paris e Roma, os
norte-americanos urbanos passaram a contar com um certo índice de crimes. Roubos eram de longe as ofensas mais comuns. Sem os arquivos de impressões
digitais que temer, os ladrões tinham como limites apenas a própria consciência e a própria astúcia. Os assaltos quase não apareciam mencionados nos jornais
locais, a não ser que a vítima fosse uma pessoa importante.
Existe uma história sobre uma viúva idosa chamada Agnes Pendel Brown, que vivia sozinha com seu antigo mordomo (quase tão idoso quanto ela e surdo como uma porta) em uma mansão de três andares na Amsterdam Avenue. Na noite 2 de dezembro de 1799, Agnes e seu mordomo haviam se recolhido aos seus aposentos ; ele no primeiro andar; ela no terceiro. Quando acordaram na manhã seguinte, toda a mobília, todas as obras de arte, cada vestido, peça de louça e candelabro (incluindo as velas) haviam sumido. As únicas coisas que os gatunos de mãos leves haviam deixado eram as camas em que Agnes e seu mordomo dormiam.
Havia também um ou outro assassinato. Antes da Guerra da Revolução, os homicídios eram extraordinariamente raros nas cidades norte-americanas (é impossível
fornecer números precisos, mas uma pesquisa em três jornais de Boston entre 1775 e 1780 menciona um total de apenas 11 casos, dez dos quais foram
prontamente solucionados). A maioria desses casos eram os chamados assassinatos por honra, como duelos ou querelas familiares. Na maior parte deles, nenhuma
pena era aplicada. As leis do início do século XIX eram vagas e, sem que se pudesse falar então em efetivos regulares de força policial, difusamente observadas.
Vale mencionar que matar um escravo não era considerado assassinato, independentemente das circunstâncias. Tratava-se de mera ;destruição de propriedade;.
Imediatamente depois que conquistou sua independência, algo estranho começou a acontecer nos Estados Unidos. O índice de assassinatos nas cidades começou
a crescer drasticamente, quase da noite para o dia. Diferentemente dos assassinatos por honra dos anos anteriores, esses assassinatos pareciam aleatórios; sem sentido. Entre 1802 e 1807, houve o inacreditável número de 204 homicídios sem solução apenas na cidade de Nova York. Homicídios sem testemunhas, sem motivo e, muitas vezes, sem uma causa mortis definida. Como os investigadores (muitos dos quais eram voluntários sem treinamento algum) não faziam registros dos casos, as únicas pistas sobreviventes nos chegaram a partir de um punhado de apagados artigos de jornal. Um deles, em particular, do New York Spectator, captou o pânico que tomara conta da cidade em julho de 1806.
Um certo senhor Stokes, morador do número 210 da Tenth Street, encontrou a pobre vítima, uma mulher mulata, enquanto fazia sua caminhada matinal. O cavalheiro observou que os olhos dela estavam arregalados e seu corpo, deveras enrijecido, como se houvesse secado ao sol. Um policial chamado McLeay informou-me de que não foi encontrado sangue nas imediações da pobre alma nem em suas roupas, e que a única ferida era uma discreta escoriação no pulso. Esta é a quadragésima segunda vítima a ter semelhante fim este ano. O prefeito, o honorável Dewitt Clinton, respeitosamente aconselha os cidadãos de bem a intensificar a vigilância até que o patife responsável seja capturado. Mulheres e crianças devem caminhar sempre na companhia de um cavalheiro, e os cavalheiros deverão caminhar em duplas depois do anoitecer.
A cena era misteriosamente semelhante a uma dúzia de outras relatadas naquele verão. Sem trauma. Sem sangue. Olhos arregalados e corpo rígido. O rosto, uma máscara de terror. Um padrão surgiu entre as vítimas: eram todos negros livres, vagabundos, prostitutas, viajantes e deficientes mentais ; pessoas com pouco ou nenhum vínculo com a cidade, sem família, e cujas mortes difi cilmente despertariam a ira das massas em busca de justiça. E Nova York não era única cidade com esses problemas. Artigos semelhantes enchiam as páginas dos jornais de Boston e da Filadélfia naquele verão, e rumores similares enchiam as bocas dessas populações em pânico. Falava-se de loucos sombrios. De espiões estrangeiros. Falava-se até em vampiros.
ABRAHAM LINCOLN: CAÇADOR DE VAMPIROS
De Seth Grahame-Smith. Tradução: Alexandre Barbosa de Souza. Intrínseca, 336 páginas. R$ 39,90.