Diversão e Arte

Filme Boneca de carne finalmente ganha versão em DVD

Ricardo Daehn
postado em 09/03/2011 07:22
Carroll Baker (acima, com o ator Karl Malden, com Eli Wallach) foi indicada ao Oscar de melhor atriz pelo papel de Baby DollPerto das festividades do Natal de 1956, a estreia em cinemas de Baby Doll caiu como um presente ; de grego ; para os norte-americanos: um discurso anárquico, jocoso, embrulhado com um papel pardo, de manejo muito incômodo e ruidoso. ;Ridículo, improvável e nada realista;, pela ótica do próprio diretor, o nunca discreto Elia Kazan, Boneca de carne (título no Brasil, onde permanecia inédito no mercado de vídeo e DVD) não é de fácil digestão. Assisti-lo, porém, traz o prazeroso gosto do que é proibido. Não foi à toa que a Igreja e entidades como a Liga da Decência ameaçaram os espectadores em potencial (inclusive com prenúncio de excomunhão). E mais: até a revista Time estampou o rótulo de filme ;mais sujo; já lançado por uma distribuidora (a Warner).

Provocativo, Kazan deleitava-se com a condensação de duas peças de Tennessee Williams que ;nem os franceses gostaram;, filmada com a sapiência de que ;a câmera pode ser um equipamento de penetração, quando usada com esse fim;, como declarou em livro de Jeff Young. Protagonista, e nunca mais dissociada do papel, Carroll Baker pode até renegar a ;intenção de chocar; (num material extra da edição americana do DVD), mas os elementos a desmentem: de polegar na boca, a lânguida Baby Doll passa horas dentro de um berço, com a promessa de ser deflorada aos 20 anos pelo marido, Archie Lee (Karl Malden), enquanto se multiplicam, na fita, os diálogos dúbios (sem saber datilografar, por exemplo, a protagonista, candidata à vaga de recepcionista, diz ter ao menos uma ;boa mão;).

Com evidente problema sexual, o marido acusa a frieza da mulher, que lhe devolve: ;Você mordeu mais do que podia mastigar;. Com autoestima cambaleante, ridicularizado pela careca, Archie Lee ainda amarga qualificações de ;grande velho gordo;. Nas raras saídas da decadente propriedade, em Tiger Tail (Mississippi), Baby Doll ; seja com sorvete em punho ou nas corridas pelas terras próprias ao cultivo do algodão, em toda a parte ; é constantemente deflorada pelos olhares das rodinhas masculinas.

Um dos grandes medos dos moradores do segregado sul norte-americano, o de que a produção poderia se valer de troças, não se confirmou. A região, em que o processamento do algodão serve como pano de fundo à história, tem o preconceito a negros (que escancaram deboche, quando veem má fortuna para personagens brancos) revertido na figura animalesca de Archie Lee ; que, por sinal, guarda ligeira semelhança com o Stanley Kowalski de Marlon Brando, em Uma rua chamada pecado, outra obra com a grife Elia Kazan e Tennessee Williams.

Cenas eróticas
Algumas expressões de preconceito se estendem ao papel coadjuvante de Silva Vacarro (interpretado pelo perturbador Eli Wallach, recém-premiado com Oscar especial, aos 95 anos), o ;italiano sujo;, com ;energia para queimar;, como ele enfatiza, em visita a Baby Doll. Representando a ameaçadora ala moderna da industrialização algodoeira, Silva sofre um baque na trama, até demarcar o inimigo: Archie Lee. ;Abusando da hospitalidade; da mal-assombrada casa de Lee, com um rebenque à mão, Silva vai protagonizar eróticas cenas antológicas da menos explícita carga. Adensado pela chuva, o encontro entre Silva e Baby faz explodir o olhar mais sugestionável de Carroll Baker.

Dos elogios moderados a Baby Doll, na clássica cena do balanço, Silva solta um: ;Você faz algo por mim, e eu faço algo por você;. Não demora, ao som de Shame, shame, shame! (com o representante do rhythm and blues Smiley Lewis), estará comandando a cena lúdica em que cavalga um cavalinho de madeira e pisa, de botas, na barriga da protagonista, enquanto ela se rende a mordidas. Com declarações impulsivas, como a de que ;o estímulo da inocência é algo erótico;, Elia Kazan, nas entrevistas, duelou em safadeza com a personagem de Carroll Baker. ;O fato de ela chupar o dedão não revela inclinação para sexo oral; está entre as pérolas mais brandas do diretor.

Comédia de humor negro, Boneca de carne pontua retrato dos mais precisos e pesados, no cinema (ao lado de Noite do iguana e De repente, no último verão), do universo de Tennessee Williams (1911-1983). Entrou para a história a reboque de polêmica e quatro indicações para o Oscar: melhor atriz, atriz coadjuvante, roteiro adaptado e fotografia (para o excepcional trabalho de Boris Kaufman). A lembrança da Academia para a coadjuvante Mildred Dunnock, na pele da insana Tia Rose, concentra muito do paradoxo de Williams: se vislumbra as flores como ;poemas da natureza;, ela visita hospitalizados para roubar chocolates e doces dos moribundos.

BONECA DE CARNE
(Baby Doll, EUA, 1956). De Elia Kazan. Com Carroll Baker, Karl Malden, Eli Wallach e Mildred Dunnock. Cult Classic, drama, 114min. Não recomendado para menores de 16 anos. Preço sugerido: R$ 29,90. ****

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