Severino Francisco
postado em 13/03/2011 12:26
;Acho que em outra encarnação eu fui brasileiro;, costumava brincar o norte-americano Will Eisner, um dos maiores gênios das histórias em quadrinhoso, criador do célebre personagem Spirit. Sempre houve uma misteriosa conexão entre Eisner e o Brasil. Logo no início da carreira, um dos seus principais colaboradores era o desenhista André Le Blanc, ilustrador das histórias do Sítio do Picapau Amarelo. Ele nasceu no Haiti, mas se casou com uma brasileira e se naturalizou com a nacionalidade da esposa. Em razão dos problemas de comunicação decorrentes da Segunda Guerra Mundial, as tirinhas do Spirit chegaram ao Brasil primeiro do que à Europa, na década de 1940, publicadas na revista Gibi. Ziraldo era um garoto de Caratinga, Minas Gerais, quando pegou uma revista, deixou de ir à missa, ficou fascinado e descobriu que só queria uma coisa na vida: fazer quadrinhos. E, por um outro caprichoso lance do destino, o primeiro documentário sobre a sua vida, Will Eisner ; profissão cartunista, foi realizado por uma brasileira, Marisa Furtado de Oliveira, e transformado agora em DVD.Embora tenha marcado a estreia de Marisa, o documentário é excelente e já foi exibido em 40 países, incluindo, entre outros, Estados Unidos, Espanha, Itália, Portugal e Bélgica. Com o filme, Marisa ganhou o HQMix, em 2000, o principal prêmio dos quadrinhos brasileiros. A fita está dividida em três partes: a primeira conta a história de Spirit, o mais famoso personagem de Eisner; a segunda aborda o sonho de ser reconhecido como artista dos quadrinhos; a terceira mostra a técnica do artista na prancheta.
Mesmo inserido na produção em série da indústria do entretenimento, Eisner insuflou um sopro de inovação nas histórias em quadrinhos ao criar o personagem Dan Colt, o Spirit. Dado como morto, o detetive mascarado transformou o cemitério em sua base de operações para desvendar os crimes que avançavam os seus tentáculos por Central City (leia-se Nova York). No decorrer das aventuras de suspense, o Spirit se envolve com toda uma fauna de personagens do submundo de Nova York.
Descendente de uma família de judeus, a iniciação de Eisner à arte começou em casa, acompanhando o pai no ofício de criar cenários para peças de teatro. Espectador apaixonado pelo cinema expressionista alemão e leitor voraz dos contos de Edgar Allan Poe, Maupassant e O. Henry, ao ser convidado para criar uma história em quadrinhos, Eisner recusou o modelo dos superheróis, pois lhe interessava o drama das pessoas comuns. Na verdade, criou um antiherói e só concordou em que o Spirit usasse máscara por exigência dos distribuidores. Até os vilões Doutor Octopus, Doutor Cobra, Silk Satin e Sand Saref foram humanizados: ;Nunca gostei de heróis imortais, me parece mais interessante a possibilidade humana de fracassar;, diz Eisner. ;Me interessava contar o drama e a comédia humana.;
Inovações
Com as historinhas de Spirit, Eisner elevou os quadrinhos à categoria de arte, ao introduzir uma série de inovações: o humanismo dos anti-heróis, a ambientação dramática dos filmes expressionistas, a arquitetura como cenário teatral, a habilidade em conduzir o suspense e a invenção de logotipos diferentes logo no início das tiras incorporados ao desenho de acordo com o clima de cada uma das histórias. De outra parte, as suas experimentações de perspectiva no desenho influenciaram as tomadas de câmera no cinema.
Na década de 1970, Eisner estava em baixa, mas o encontro com os jovens do underground americano (Art Spielgelman, Denis Kitchen) abriu uma nova perspectiva em sua carreira. Até então sempre havia trabalhado segundo as regras rígidas da indústria do entretenimento. A turma do underground lhe revelou que era possível utilizar os quadrinhos como um espaço de crítica, questionamento e contestação social. Esse encontro o inspirou a desenhar Contrato com Deus e a inventar um novo subgênero dentro da história em quadrinhos, a grafic novel, a ficção gráfica, acomodada no formato livro, sem se importar mais com limites de páginas ou espaço.
Produzido a partir de uma rápida entrevista com Eisner, o documentário poderia se transformar num registro enfadonho, em mãos menos hábeis. No entanto, Marisa Furtado soube aprofundar, recriar, estabelecer conexões, animações dos desenhos e cortes precisos, que resultaram em um documentário agradável e revelador não apenas sobre a arte desse mestre da invenção, da generosidade, do humanismo, do drama e da diversão, mas sobre a própria história das histórias em quadrinhos.
Amigos brasileiros
Ziraldo, Maurício de Souza, Angeli, Jal são alguns dos brasileiros que dão depoimentos sobre o impacto que as historinhas de Eisner exerceram sobre eles. Em uma das viagens ao Brasil, Jal e Gual vestiram uma máscara do Spirit para esperar Eisner no aeroporto. O quadrinista adorou a brincadeira e posou de máscara para os otógrafos.