Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Com um empurrão de Moacyr Scliar, José Rezende Jr mirou só literatura

;A solidão de Brasília é criativa;

Foi no jornalismo que José Rezende Jr. soltou a mão. A prática da escrita diária e o contato com histórias de pessoas comuns ajudaram, mas foi preciso um empurrãozinho de Moacyr Scliar para se dedicar de vez à literatura de ficção. Depois de trabalhar nas redações do Correio Braziliense, do Jornal do Brasil e do O Globo, deixou de lado o jornalismo diário para se concentrar na escrita literária. Amor e morte são os temas recorrentes do mineiro cruzeirense que está em Brasília há 24 anos. São as grandes questões existenciais do ser humano e Rezende se sente confortável ao escrever sobre elas. Já renderam dois livros de contos e um de microcontos. Em 2010, Eu perguntei pro velho se ele queria morrer (e outras histórias) ganhou o Prêmio Jabuti na categoria contos. Abaixo, o autor fala sobre Brasília, Cruzeiro, jornalismo e o amor nos tempos modernos.


Moacyr Scliar morreu no fim de fevereiro. Ele tem alguma influência na sua ficção?
A gente não era amigo, não. Eu tinha uma profunda inspiração pelo Scliar quando o conheci. Foi por meio da A arte de escrever, uma série que a gente fez no caderno Pensar do Correio, em 1996. Mergulhei muito no universo dele e me assustei com a força da narrativa, com a visceralidade. Ele gostou muito da entrevista, porque fiz umas perguntas que ele considerou muito profundas. Muito do escritor que eu viria a ser veio daquela entrevista, das coisas que ele me disse. Outra coisa é a generosidade dele. Aquela coisa de desmistificar a figura do escritor. Quando fui lançar meu primeiro livro, A mulher-gorila e outros demônios (7Letras), veio aquela insegurança. Cheguei em um ponto em que não tinha mais capacidade de julgar. Então mandei para ele. Pedi que lesse. Ele mandou um e-mail que nunca vou esquecer. Falou coisas que me animaram muito: ;Há muito tempo não lia ficção tão poderosa;. Falei, ;caramba, acho que sou escritor!”. Eu sou muito tímido, mas resolvi chutar o pau da barraca. Agradeci e pedi que ele fizesse o prefácio para mim. Depois de três dias, ele me mandou. É bacana quando você pega um autor, um grande artista que também é um grande ser humano.

O Cruzeiro é talvez o melhor clube brasileiro em 2011. Está empolgado com as goleadas do time?
Eu dei uma desanimada. Acompanho, fico feliz. Mas não vi nenhum jogo ainda da Libertadores. Não vi nem os gols. Cheguei à conclusão de que futebol é uma forma de sofrimento. É a coisa mais irracional que existe, não o futebol em si, mas a relação que a gente tem com o esporte. Essa rivalidade de cruzeirenses e atleticanos, que muitas vezes dá morte. Eu já fiquei bravo, já chorei; Fiz um acordo comigo mesmo de ir aos poucos relaxando. Para não vibrar muito, não ficar muito feliz e não chorar muito numa final. Eu já estava nessa desaceleração com o futebol. Mas, futebol como fenômeno, é um prato cheio para qualquer escritor. Acho que é até pouco explorado aqui. Eu amo o Cruzeiro. Sou cruzeirense, jamais deixarei de ser. Mas resolvi, a bem da minha sanidade, dar uma relaxada.

O futebol deixou de ser algo artesanal para se transformar em um grande negócio e um grande espetáculo? Isso tira sua motivação diante desse esporte?
Eu acho que espetáculo é o Cruzeiro de Tostão, Dirceu Lopes, Zé Carlos, Piazza. Aquela época era espetáculo, sim. Aprendi a ser cruzeirense com o meu pai, vendo esse time. Chorei muito quando o Tostão foi para o Vasco. Naquela época não tinha isso, os jogadores começavam e encerravam a carreira no mesmo clube. Eu não sei te dar a escalação do Cruzeiro de hoje. Talvez eu te dê a escalação dos anos 1970. Mas do último jogo, eu não sei. Porque eles mudam muito de time. Antes se criava uma identidade com o clube, a camisa, o escudo, o hino, a bandeira, mas também com o time. Os jogadores tinham identidade com a torcida. O Tostão era cruzeirense, acredito. O Dirceu, sei que ele continua até hoje. A paixão não era só do torcedor, era também do jogador. Hoje não existe. Hoje ele está aqui, amanhã está lá.

Você é jornalista, mas a sua grande paixão é a literatura. De que maneira uma e outra se entrelaçam quando você está escrevendo?
O jornalismo me ajudou e atrapalhou na literatura. De que forma atrapalhou? Eu queria, a certa altura da minha vida, escrever um livro. Mas não trabalhava para isso, para ser de fato um escritor. Quando decidi que queria fazer literatura, era jornalista e não tinha espaço mental para fazer ficção. Chegava em casa cansado. E em que ajudou? Em termos de bagagem. Tendo tido a oportunidade de viajar o mundo, mesmo quando não viajava. Mas o jornalismo que eu gostava de fazer era de contar histórias. Com liberdade de texto, de propor pautas criativas, chamadas pautas invisíveis, aquilo que não é óbvio. Conheci lugares, situações e, sobretudo, pessoas, que talvez eu não conhecesse se não fosse jornalista. Na hora de escrever, recorro a mim mesmo. Mas a minha literatura está muito longe de ser confessional. Eu, Rezende, me anulo. Nesse sentido, o jornalismo ajudou muito. O fato de conhecer diferentes modos de falar, de ver a vida, e principalmente o homem, a mulher do interior, do sertão.

Você gosta de contar histórias de gente. Especialmente histórias de encontros e desencontros. Por que? O amor é algo tortuoso e sofrido sempre?
Eu sou uma pessoa totalmente crente no amor, nos encontros, nos relacionamentos. Mas não escrevo sobre mim. Vejo a dificuldade que existe no mundo de as pessoas se encontrarem. Há cada vez mais desencontros do que encontros. Quando escrevo sobre desespero no amor, certamente não escrevo sobre mim, mas sobre essa dificuldade do ser humano. Pode ser que já tenha vivido uma fase de desencontro, de solidão extrema. Posso até voltar a viver (bate na madeira três vezes). Espero que não. Escrevo sobre dois grandes temas: vida e morte e tudo que envolve vida e morte (risos). O que me interessa mesmo são essas grandes aventuras existenciais.

Qual a história de Miguilim, seu cachorro? O cachorro é mesmo o melhor amigo do homem?
Eu brinco que somos uma matilha. Eu, Andrea (mulher), Leon, Miguelin e a Flor Bela, que está aqui há um mês. Sou apaixonado por animais, desde criança. Tão apaixonado que sou vegetariano. Há 25 anos não como carne. E não é que eu me preocupe muito com a saúde. Eu sou muito esculhambado. Tomo muita Coca-Cola, como Ruffles, um monte de porcaria. Mas é claro, como arroz integral, soja, vegetais, mas é uma coisa meia boca. Amo tanto os bichos que não me vejo comendo-os. E consegui eliminar o couro da minha vida, também. Tenho profundo amor, mas nunca tive coragem de ter um bicho meu. Amo os bichos. A Andrea sempre quis ter, mas a mãe dela não deixava quando era criança. Agora decidimos ter. E veio o Miguelin. Ele é lhasa apso. A gente estudou anos sobre qual cachorro iríamos ter. Ele não precisa de muita atividade, dorme muito. E depois a gente adotou os dois gatinhos, são vira-latas.

Você é mineiro mas mora em Brasília há muitos anos. É difícil ficar aqui para um mineiro? O que mais gosta e o que mais detesta na cidade?
Cheguei aqui em 1987. Eu senti muito vazio, pouca gente. É meio lugar-comum, mas é verdade, isso incomoda a gente. Foi uma fase muito dura, de solidão. Foi triste. Pensei em ir embora. Mas depois que passa um período, consegui sobreviver. Acho que o ser humano se adapta a tudo. Até a Brasília (risos). Você começa a compreender a cidade, a dialogar com ela, a dar desconto. E depois está amando. Acho que a solidão de Brasília é criativa, te leva a mergulhar mais em você mesmo. Não quero voltar para Belo Horizonte. Brasília é a minha cidade, mas não gosto da falta de mistura aqui no Plano Piloto. Você vai nos lugares e encontra pessoas mais ou menos com os mesmos gostos, do mesmo meio social, todo mundo de carro. Acho artificial. É um certo gueto ao contrário. Gueto de prosperidade.

Durante muito tempo um grupo de escritores reclamava que a cidade não conseguia projetar seus talentos literários para fora. No último ano, tivemos cinco nomes da cidade indicados ao Jabuti, um que ganhou o prêmio de poesia da ABL (Ronaldo Costa Fernandes). O que mudou?
Eu não sei. Talvez estejamos escrevendo mais e publicando mais. Lembro que havia algumas políticas públicas, dizendo que toda livraria deveria ter uma estante dedicada à literatura brasiliense. Mas acho que as pessoas tinham dificuldade de publicar. Não que hoje seja fácil. Mas na quantidade você começa a encontrar qualidade. Mais gente publicando e se destacando. Antes, acho que não tinha mais do que meia dúzia. Você tem o Nicolas Behr, que já estava aí há muito tempo. Hoje tem projeção. Nunca ganhou prêmio. Mas nunca fez questão disso. Tem o Turiba. Acho que ele ainda continua pouco reconhecido nacionalmente.

Você tem Twitter ou Facebook? Como encara as redes sociais?
Sou um cara muito ligado à tecnologia e o que ela tem de bom. Uso a internet como ferramenta para me aproximar das pessoas. Tenho Twitter, Facebook, site. Do ponto de vista de um escritor, a divulgação do trabalho nesses espaços é fantástica. É muito difícil para um escritor que não é do eixo Rio-São Paulo e publica por editoras e tiragens pequenas ser notado pela mídia convencional. Comecei a publicar os microcontos no Terra Magazine e a minha lista de e-mails se ampliou. Você tem que juntar as duas coisas, o meio físico e o meio virtual. Recomendo aos jovens escritores que usem as redes sociais. Não para se tornarem celebridades. Mas para acharem o seu leitor. Que sejam 200, 300 leitores. É preciso ter a dimensão da coisa. Não pode delirar, achar que vai vender livro pra caramba.

Você disse que a literatura perdia cada vez mais espaço nos jornais. Por que acha que isso acontece?
Durante muito tempo os jornais foram espaços de reflexão, de pensamento. Acho que se modernizaram muito no mau sentido. O culto a celebridades instantâneas é um modelo que se impôs. Em vez de fazer um contraponto a isso, os jornais se renderam. É a escandalização de tudo, da política. As pessoas precisam ter a dimensão de que a política é uma coisa boa.

Você acha que a literatura é pouco citada nas políticas públicas?
O cinema é uma indústria, o teatro, a música envolvem engrenagens com muita gente. A literatura é uma coisa muito pessoal. O escritor se senta e escreve. Não se ganha dinheiro com literatura. Eu posso me dar ao luxo de fazer literatura porque tenho atividades, consigo arrumar tempo e ganhar dinheiro para me manter. Mas muitos não podem. Acho a política de bolsas interessante. Talvez pudessem expandir isso para facilitar o trabalho, dar a qualidade de vida para o escritor que queira tentar viver da literatura.

Trecho do conto Eu perguntei pro velho se ele queria morrer, extraído do livro Eu perguntei pro velho se ele queria morrer (e outras estórias de amor), de José Rezende Junior.



Eu olhei bem pra cara do velho, mirei no meio dos olhos e perguntei se ele queria morrer. O velho disse que sim, quer dizer, eu achei que sim, é claro que ele queria morrer, que graça tinha continuar vivo daquele jeito? Mas eu não tive certeza. Eu procurei uma resposta, uma confirmação, um sinal que fosse, antes de puxar o gatilho eu precisava ter certeza que ia fazer aquilo pra livrar o velho, e não pra me livrar do velho. Claro que eu também queria me livrar do velho, mas saber que era o melhor pra ele talvez me fizesse sentir bem, de um jeito que eu nunca me sentia depois de puxar o gatilho. Não sei o que deu em mim, só sei que levantei da cama de saco cheio e achando qie matar o velho era uma boa ação, a primeira, a única, a última da minha vida, se bem que eu não tava nem aí pra boa ação, mas o velho com certeza ia ficar feliz, quer dizer, eu achei que ia. Daí eu fiquei esfregando o dedo no gatilho, puxava um pouquinho e depois soltava, à espera de um sinal do velho, mas não via nada nos olhos dele, o velho não deu sinal de nada, nem de sim nem de não, daí eu precisava resolver a parada sozinho, por minha conta.