Diversão e Arte

Ações judiciais de herdeiros prejudicam lançamento de biografias

Severino Francisco
postado em 27/03/2011 07:00

Se você folheou, distraidamente, nas prateleiras de uma livraria, Chatô, o rei do Brasil, de Fernando Morais; Olga, do mesmo Morais; Chega de saudade, Garrincha, a estrela solitária e O anjo pornográfico, todos de Ruy Castro; Noel Rosa, de João Máximo e Carlos Didier, ou Roberto Carlos em detalhes, de Paulo César Araújo, muito provavelmente teve dificuldades em parar a leitura. E se comprou o livro, quando chegou à última página, percebeu que havia se divertido com a narrativa envolvente e, ao mesmo tempo, se ilustrado sobre história e cultura brasileira. Mas uma série de ações judiciais movidas por herdeiros de personagens ilustres da cultura brasileira está ameaçando a onda de excelentes biografias produzidas a partir da década de 1980 e colocando no ar um debate: direito à privacidade ou censura?

De um lado, os herdeiros e seus advogados brandem o artigo 5 da Constituição de 1988, garantido que ;são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas;, assegurando o direito de indenização por dano material ou moral. De outra parte, os biógrafos e historiadores contra-argumentam com o direito de expressão, também contemplado na mesma Carta Magna, alertando que, na prática, essas ações podem significar o empobrecimento e a oficialização da memória brasileira, reduzida a versões autorizadas.

A biografia Roberto Carlos em detalhes, de Paulo César Araújo, está oficialmente proibida para edição e venda. A Justiça condenou o autor a uma multa no valor de R$ 500 mil por dia, caso insistisse em manter a obra nas livrarias e o cantor recolheu 11 mil exemplares da Editora Planeta e guardou em um depósito em Santo André (SP): ;A ideia de Roberto Carlos era queimar o livro, mas com os protestos, ele resolveu deixar no depósito;, comenta Paulo César, que foi alvo de dois processos: um civil e outro criminal. ;Ele queria que eu ficasse dois anos na cadeia. Esta lei é absurda, fere o direito de liberdade de expressão. Eu sou fã de Roberto Carlos e pesquisei 15 anos para fazer esse livro. O Ruy Castro também é fã do João Gilberto. O Carlos Didier e o João Máximo também adoram Noel Rosa. E ele não me processou por difamação, disse apenas: ;Só eu tenho o direito de contar a minha história.; É surreal, existem mais de 8 mil livros sobre os Beatles e o Paul McCartney nunca censurou nenhum.;

No caso de Roberto Carlos, Paulo César considera o argumento de invasão da vida privada duplamente absurdo, pois todos os fatos abordados no livro são de amplo conhecimento público: o acidente que sofreu na perna, as namoradas, o sofrimento com a morte da esposa: ;Todos esses fatos foram divulgados pelo próprio Roberto Carlos em canções e entrevistas;, argumenta Paulo César. A reportagem entrou em contato com os advogados do cantor, mas não obteve resposta.

Surpresa
Como já havia ocorrido com suas obras anteriores, ao terminar o livro Matar ou morrer ; A morte de Euclides da Cunha e a noite sem fim de Dilermando de Assis, a historiadora Mary Del Priore enviou os originais para os herdeiros dos personagens envolvidos no episódio. Mas, para a sua surpresa, Anna Sharp e Tania Andrade Lima, netas de Dilermando e Anna Cunha, não gostaram do tratamento dispensado aos avós e ameaçaram a autora com processo: ;A solução foi mutilar o livro para que ele fosse publicado;, admite Mary. Dilermando de Assis era amante de Anna Cunha, mulher de Euclides. Em uma investida para reparar a honra, Euclides desfechou tiros no amante da mulher, mas tombou fulminado, pois Dilermando era um atirador de elite. ;Elas só admitem que se fale de Anna Cunha como se fosse uma santa. Anna conheceu Dilermando quando ele tinha 17 anos e era 13 anos mais velha. Foi a única época em que o Rio tinha mais homens do que mulheres. Não é telenovela da TV Globo. Tudo que narrei está documentado nos jornais da época e no processo sobre a morte de Euclides. Eu queria desmistificar a imagem de Dilermando como assassino. Ele agiu em legítima defesa.;

Mary Del Priore considera a demora em mudar a lei do direito à privacidade um atraso obscurantista para o país e um atestado de ignorância crassa para impedir a produção de conhecimento sobre a história brasileira: ;Esta posição reflete bem um Congresso povoado de fichas sujas e que investe pouco em educação e cultura. Nós deveríamos tomar como modelos os Estados Unidos e os países civilizados da Europa.;

Imagem
Autor de biografias já consideradas clássicas, tais como Chega de Saudade, O anjo pornográfico e Garrincha, a estrela solitária, o jornalista Ruy Castro vê a questão de uma maneira muito simples. Se o biografado ou a família dele achar que a imagem foi ;denegrida;, processe o autor ou encomende um biógrafo de aluguel para ;limpar; a imagem do perfilado: ;Enfim, pode fazer o que quiser, menos proibir o livro de circular;, defende o jornalista. ;Nos Estados Unidos e na Europa, quem não estiver satisfeito, que processe o autor ; não o livro.~

Ruy Castro foi alvo de dois processos de familiares do jogador Mané Garrincha, insatisfeitos com aspectos da biografia sobre o ponta-direita que, segundo Nelson Rodrigues, driblava até as barbas de Rasputin. A lei que garante o direito à privacidade de figuras públicas está representando uma séria ameaça à construção de uma memória política e cultural brasilera, alerta Ruy Castro. ;As editoras estão com medo de publicar biografias. Qualquer tetraneta de Getúlio Vargas, por exemplo, pode se ofender se um biógrafo contar que o Getúlio se suicidou e meter um processo. E a história do Brasil, como é que fica aí?; Como sair do impasse? Segundo Castro, é preciso alterar o artigo do Código Civil que protege a imagem das pessoas e reforçar o da Constituição, que garante a liberdade de expressão.

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