postado em 20/05/2011 13:36
Em um comunicado curto, de apenas um parágrafo, a direção do Festival de Cannes entrou oficialmente em crise com um cineasta que sempre inspirou admiração e repulsa em igual medida: um dia depois de ter provocado polêmica com declarações sobre o nazismo, o dinamarquês Lars von Trier foi declarado persona non grata pelos organizadores do evento, que se reuniram em caráter extraordinário ontem pela manhã. Os comentários do autor de Dogville (2003) e Anticristo (2009), que ofuscaram os debates sobre os filmes selecionados para a mostra competitiva, foram considerados ;inaceitáveis, intoleráveis e contrários aos ideais de humanidade e generosidade que regem a própria existência do festival;.Entrevistado pelo jornal Ekstra Bladet, da Dinamarca, o diretor de 55 anos comentou que sente ;orgulho; por ter sido banido. ;Talvez seja a primeira vez na história do cinema que isso aconteceu. Acho que uma das explicações é que os franceses trataram os judeus muito mal durante a Segunda Guerra. É um tema delicado para eles. Eu respeito o festival de Cannes, mas compreendo a raiva que eles sentem por mim neste momento;, afirmou. Em entrevista coletiva realizada às pressas, o presidente do festival, Gilles Jacob, confirmou que Cannes nunca havia declarado alguém como ;persona non grata;. ;Ele manchou a reputação do festival;, afirmou.
O mal-estar entre o realizador e os diretores do evento se instalou na apresentação do filme Melancolia, que concorre à Palma de Ouro, aos jornalistas. O diretor disse que sentia empatia e entendia Adolf Hitler. ;Sempre gostei de pensar que eu era judeu, mas depois descobri que minha família era alemã e que, na verdade, eu era nazista, o que também me deu certo prazer;, atacou, num tom irônico e provocativo já conhecido pelos frequentadores do evento.
;Acho que Hitler fez algumas coisas erradas, mas eu consigo vê-lo sentado em seu bunker no final. Não sou contra judeus, mas os isrealenses são um pé no saco;, observou. Naquele momento, a atriz principal Kirsten Dunst ficou constrangida e sussurrou no ouvido do autor: ;Oh, meu Deus. Isso é terrível.;
A notícia se espalhou rapidamente na mídia e obscureceu a boa repercussão de Melancolia, um drama apocalíptico. Horas depois, Trier enviou um texto à imprensa pedindo desculpas pela declaração. ;Não sou antissemita ou racista de qualquer maneira, e muito menos nazista;, escreveu. Mas não convenceu. O longa-metragem segue na competição e pode concorrer a prêmios na cerimônia de encerramento, marcada para domingo. Mas, se vencer algum troféu, o diretor não poderá subir ao palco para recebê-lo. ;Temos que separar a obra do cineasta. Estamos punindo o diretor, não o filme;, justificou o presidente da mostra. ;Não se pode brincar com o nazismo;, opinou Dunst, que não quis se aprofundar na discussão.
Segundo Gilles Jacob, que é judeu e teve a família perseguida durante a Segunda Guerra Mundial, a decisão de banir Trier partiu do conselho de 28 diretores do evento e não tem relação alguma com as escolhas do júri presidido por Robert de Niro. Ainda não está definido se a punição valerá apenas para esta edição. Trier, que venceu a Palma de Ouro em 2000 com Dançando no escuro, era um dos cineastas mais queridos pelos organizadores do evento. Desde 1984, quando venceu prêmio técnico por Elemento de um crime, Cannes serviu de plataforma de lançamento para quase todos os longas do diretor. O prestígio do diretor permitia que os filmes ocupassem a seção mais nobre da Croisette, a seleção oficial. Melancolia é o nono longa do diretor que compete à Palma de Ouro.
Em retribuição ao ;acesso VIP; à casta privilegiada do cinema mundial, Trier quase sempre correspondeu às expectativas da imprensa com filmes ousados e, mais do que isso, depoimentos controversos nas entrevistas coletivas. Este ano, no entanto, até os defensores do diretor admitem que ele foi longe demais ; ou preferiram não tocar no assunto. Pela manhã, as redes sociais foram tomadas por posts em defesa do cineasta, mas nenhum diretor concorrente havia se manifestado. Jornalistas já especulam se o júri oficial teria coragem de premiar Kirsten Dunst, a protagonista de Melancolia, que por enquanto lidera a lista de preferidas ao prêmio de melhor atriz.
Almodóvar
Na reta final de Cannes, o escândalo de Trier diluiu o impacto de uma das atrações mais esperadas da mostra: o novo longa de Pedro Almodóvar, La piel que habito (;A pele que habito;). O filme ;de terror;, estrelado por Antonio Banderas, narra a história de um médico que aprisiona uma paciente para fazer experiências com cirurgia plástica. O filme faz uma série de referências ao Brasil, que aparece na trilha sonora e até na própria concepção do roteiro: na coletiva, Almodóvar comentou que foi com Ivo Pitanguy que ele ouviu falar pela primeira vez sobre cirurgia plástica. ;A música e o idioma dos brasileiros são algumas das coisas mais ricas do mundo;, comentou.
A ;lição; contra Trier e a reação morna dos críticos diante do novo Almodóvar, que estreia em 25 de novembro no Brasil, acentuam o favoritismo de A árvore da vida, de Terrence Malick, ao prêmio principal. Mas o longa deve brigar com outros queridinhos dos jornalistas: a fábula social Le Havre, de Aki Kuarismaki, e a comédia ;vintage; The artist, homenagem do francês Michel Hazanavicius ao cinema mudo.