postado em 29/05/2011 13:31
Pense no roteirista de Cidade de Deus e Tropa de elite como um narrador em busca de uma boa história, a mando de um diretor de cinema supostamente ;genial;. Entre lapsos de realidade e ficção, ele entra num manicômio, localizado numa cidade no interior de São Paulo, com um bloco de anotações e um gravador emprestado ; ele não se lembra de quem. É a terceira visita a um lugar que acolhe ex-agentes da ditadura militar: torturadores de militantes de esquerda. Seus olhos já se acostumaram com a vastidão branca de pacientes, enfermeiros e paredes. Dessa vez, um dos internados, que atende somente por CFD, resolveu contar tudo. A fala ;sinuosa; revela, com detalhes, a história transcrita e comentada em Perácio: Relato psicótico (Leya), livro de estreia de Mantovani.
Nele, os limites que separam tão fragilmente ficção e realidade não são derrubados, mas anuviados. Mantovani equilibra capítulos com relatos inteiros de CFD sobre a vida de Perácio, um ex-agente que pagou caro por não respeitar as normas, apaixonar-se e comprometer uma operação, e comentários próprios, redigidos como se alguém estivesse batendo à porta, reclamando as fitas com uma arma em punho. Nas passagens, o autor recupera anotações e repercute a conversa com CFD. Trata-se de uma leitura propositadamente confusa: forma e conteúdo organicamente conectados pelo mesmo desequilíbrio que une os personagens.
Estrutura caótica
As fitas revelam que Perácio, massacrado por pesadelos desde criança, às vezes era incapaz de distinguir memória e sonho. A angústia do personagem é transformada em ferramenta de escrita. ;A mistura de realidade e ficção no meu romance não é um tempero. É uma realidade imposta por uma das premissas do livro: quem sofre de pesadelos constantes tem a tendência de confundir as memórias dos fatos com as lembranças dos sonhos. Foi por isso que incluí na história amigos reais (Eduardo Duó, Maria Bacellar, Luiz Cabral) e referências à minha trajetória profissional, como a escrita do filme Carlota/amorosidade;, explica.
Desde a orelha, nota-se que Perácio também é um making of da história: reproduções de mensagens eletrônicas mostram bastidores, conversas entre editores sobre prazos e rascunhos, e Mantovani insere, em algumas páginas, sugestões para o editor, pedindo que reordene dos capítulos ou corte parágrafos desnecessários. ;Tentei construir, simular uma escrita apressada, com notas para revisão e tudo o mais. Minha ideia era tornar presente, para o leitor, o processo de enlouquecimento produzido pela audição do relato;, descreve.
No capítulo de introdução, ele diz que transcreveu o relato na Itália ; ;pura invenção minha; ;, adotando um sobrenome italiano verdadeiro (Mantoan). ;Lancei mão de fatos (minha família vem mesmo de Cavarzere) para me transformar em personagem da minha ficção. Como a ideia de o relato de CFD enlouquecer quem o escuta sempre foi uma das minhas premissas, percebi que eu também deveria enlouquecer durante a transcrição das fitas (que também é uma situação ficcional);, completa. CFD é redundante e, pela ausência de vírgulas do registro, parece abrir a boca numa verborragia nauseante. Mantovani, à medida que o monólogo avança, incorpora os mesmos vícios, como se fosse realmente afetado pela vida de Perácio. O leitor que se cuide.
Cinco perguntas // Bráulio Mantovani
No livro, você diz que as entrevistas seriam compiladas em roteiro para um diretor ;genial;. Se tivesse nova oportunidade, toparia uma fazer adaptação cinematográfica?
Já topei. Vendi os direitos de adaptação do livro para uma produtora de São Paulo chamada Sala 12. Quem vai dirigir o filme é Peppe Siffredi, um jovem muito talentoso e corajoso. Não sei como ele vai adaptar meu romance nem quero saber. Ele terá liberdade total para fazer o filme da maneira que bem entender.
Imagino que a transcrição/composição de Perácio sejam imensamente diferentes das etapas e dos processos de rodução de um roteiro de cinema. Mas você tenta fornecer ao romance o temperamento de texto escrito para o cinema?
O processo de escrita do Perácio não teve nada a ver com o meu processo de escrita de roteiros de cinema. São universos lingüísticos absolutamente distintos. Não tem como misturar. E nunca tive o interesse de imprimir um ;temperamento; ; nem mesmo um tempero ; cinematográfico ao romance.
O trabalho de compor um romance faz querer repetir a dose ou você não vê a hora de
escrever novos roteiros?
Eu estou sempre escrevendo roteiros. Não vejo a hora de conseguir um tempo entre um roteiro e outro para retomar meu segundo livro, que já comecei há uns dois meses.
Como você sente depois de ter escrito algo que (ainda) não chegou ao cinema, que ainda não caiu nas mãos de um diretor?
A sensação de ter um trabalho pronto sem depender da contribuição artística de outra pessoa é muito boa. E mesmo depois que o romance virar filme, não vai fazer diferença nenhuma. O filme será uma obra independente do romance. Não serei o autor do filme.
Já está em algum novo projeto, novo roteiro? Pode adiantar alguma coisa?
Estou trabalhando em parceria com minha mulher, Carolina Kotscho (coautora do roteiro de 2 Filhos de Francisco), na adaptação do livro Código da vida, de Saulo Ramos. Carol tem os direitos do livro e é também produtora do filme.