postado em 31/05/2011 09:01
Nos minutos finais de uma partida de basquete, quando o cronômetro já torturava as jogadoras, Naomi Kawase descobriu por que se apaixonou tão perdidamente pelo cinema. O time perdia feio ; e era uma derrota inevitável ; quando a menina de 18 anos danou-se a chorar. ;Notei cada momento desaparecendo, diminuindo, senti que aqueles momentos não voltariam mais;, conta a cineasta, que na época ainda cogitava seguir carreira nas quadras. ;O técnico pensou que eu estava chorando por causa do placar. Mas não. Percebi ali que, com o cinema, eu recuperava o tempo que ia se perdendo na minha vida;, explica a diretora de 41 anos, em visita a Brasília.Desde o primeiro curta-metragem, um filme singelo de cinco minutos, o cinema de Kawase se engalfinha contra o tempo. Uma batalha silenciosa, diga-se. Nos filmes da diretora, os minutos não correm com a taquicardia de uma prorrogação esportiva, mas deixam a impressão de se alargar diante dos olhos do espectador. ;O cinema é como uma máquina do tempo. Uma ferramenta mágica;, afirma, numa conversa quase sussurrada, sereníssima, com o público que lotou a pré-estreia da mostra que exibe toda a filmografia da diretora (30 filmes, entre longas, curtas e médias) a partir de hoje na sala do CCBB.
Após a pré-estreia de Hanezu, exibido este ano na competição do Festival de Cannes, Kawase falou com simplicidade sobre um estilo que, num primeiro olhar, pode desorientar os sentidos: adentrar as florestas da cineasta representa, para o público ocidental, uma viagem de mistérios. Mas a aflição acaba assim que se ouve o discurso cristalino de Kawase. ;Muitas vezes perguntam se tenho influência de diretores Wim Wenders, Bergman. Mas nunca tive essa intenção. Eu apenas vou vivendo a minha vida, filmando. Gosto de contar as histórias de pessoas comuns, que não serão lembradas daqui a 100 anos. São pessoas que não fazem nada de muito especial;, conta.
A bem da verdade, no entanto, esse vocabulário visual é mais complexo do que a cineasta dá a entender. Desde 1997, quando o longa Suzaku venceu o prêmio Cámera d;Or no Festival de Cannes (troféu para filmes de estreantes), seduz os festivais internacionais e deslumbra a crítica francesa, que trata a autora como a herdeira mais talentosa do mestre Yasujiro Ozu. Assim como o diretor de Era uma vez em Tóquio, ela também posiciona as lentes à altura do cotidiano doméstico, das mínimas relações familiares. Mas faz questão de rejeitar a herança. ;Tenho pouco tempo para ver filmes dos outros. Quando vejo, é de uma forma apenas objetiva;, despista.
Na arte, ela sai à procura de outras inquietações: filmar a cidade natal, Nara (a 500km de Tóquio), é uma delas. Investigar a convivência entre o homem e a natureza, outra. Para imprimir nos filmes um ritmo fluido, espontâneo, a diretora aposta na improvisação. Que, na maior parte das vezes, envolve não apenas o elenco, mas toda a equipe de filmagem. A certa altura das filmagens de Hanezu, por exemplo, um passarinho se instalou sob um ventilador: o bicho acabou promovido a ;ator; do longa-metragem. ;Meus roteiros são tão soltos que às vezes fico até com medo, não sei aonde vão chegar. Por isso, sempre defino um ponto final para a história antes de começar a filmá-la;, explica.
Naturalidade
A intensidade das experiências acaba escapando para as narrativas, que envolvem o espectador numa atmosfera que combina memória e sonho, passado e presente. Os temas aparecem no filme mais elogiado da diretora, Floresta dos lamentos (2007), que venceu o Grande Prêmio em Cannes. Na trama, um homem idoso escreve cartas para a esposa falecida. Até que é chegado o momento do último texto. ;A água que corre no rio não volta, e por isso não podemos nos apegar aos sentimentos;, resume Kawase, num compasso zen.
A espiritualidade, outra característica associada à obra da diretora, aparece na tela com naturalidade. Até nesse aspecto, existe um viés autobiográfico que Kawase trata delicadamente. Aos 14 anos, a diretora perdeu o avô, um episódio que ainda contamina as imagens que filma. ;Parece que ele está sempre aqui, ao meu lado;, confessa. ;Acredito na ideia de uma figura divina zelando por nós. Mas ela pode ser uma montanha, uma floresta;, enumera. Um ;milagre; que, para ela, está sempre ameaçado pela pressa dos homens. ;As pessoas não sabem mais esperar. Querem avançar rapidamente, e a globalização, a internet só alimentam esse desejo. Talvez seja o fim de uma era;, observa. Nos filmes de Kawase, no entanto, a beleza vence a selvageria. Nem tudo está perdido.
O CINEMA DE NAOMI KAWASE
Até 12 de junho, no cinema do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). Hoje, exibição de Gente da montanha, às 19h, e Suzaku, às 20h30. Entrada franca. Não recomendado para menores de 12 anos.