Gui Amabis cresceu ouvindo histórias da avó materna, que saiu de Portugal quando tinha uns 18 anos e veio tentar a sorte no Brasil. Firmina dos Prazeres Machado adorava contá-las. Lembrava-se de tudo. E falava com detalhes da vida humilde que levava no interior de seu país, da crise pós-Primeira Guerra Mundial, do navio que a trouxe, da forma como chegou (num esquema semiescravo, já devendo a passagem); Perto de completar 80 anos, ela teve o mal de Alzheimer diagnosticado. E foi perdendo a memória, até não reconhecer mais os filhos nem os netos. Um dia, Firmina parou de falar.
;Ela passava o dia inteiro quieta no quarto. Fiquei muito abalado e intrigado com isso. Como uma pessoa que tinha fascinação pelas histórias de repente não se lembra mais de nada?;, comenta o paulistano de 34 anos, que um pouco depois da morte da avó (aos 83) começou a fazer músicas pensando nela. Compositor de trilhas de cinema e produtor de discos, Gui Amabis até então nem imaginava gravar um álbum. Mas as músicas que fez ficaram tão bonitas que os amigos o incentivaram.
Feito aos poucos, entre 2007 e 2010, Memórias luso-africanas, o CD de estreia, é uma das melhores novidades de 2011. Pode ser baixado (de graça) no site dele (www.guiamabis.com) ou encontrado nas lojas, em formato digipack, a partir da semana que vem. Das 10 faixas, Amabis canta apenas a primeira, Dois inimigos. As outras são defendidas por um belo time de cantores: Céu (mulher dele), Tulipa Ruiz, Criolo, Tiganá e Lucas Santtana. ;Queria essa pluralidade de vozes, por ser um disco de misturas;, justifica. ;
Viagem no tempo
Memórias luso-africanas é uma viagem no tempo que lembra trilha de filme. ;Como eu trabalho com trilhas, fico muito ligado em sonoridades, timbres, texturas, arranjos, e isso acaba influenciando. E também porque é um disco que conta uma história;, ele diz. Algumas letras foram inspiradas no que dona Firmina contava. Outras, como Orquídea ruiva e Para mulatu, as duas escritas por Criolo, entraram porque tinham a ver com o tema (a porção africana do título do CD vem da família do pai de Gui). E Doce demora, por exemplo, é uma música feita para Rosa, a filha dele e de Céu. ;A base meio portuguesa liga a minha filha à minha avó;, explica.
Além de cuidar das programações, Amabis tocou baixo, teclado, guitarra e violão em algumas faixas. Também cercou-se de amigos instrumentistas, como os baixistas Dengue e Marcelo Cabral, o guitarrista Régis Damasceno e o baterista Curumin. O curioso é que, entre os cantores convidados (à exceção de Céu, obviamente), nenhum era tão próximo dele até entrar no estúdio. ;Fui convidando e eles foram topando. Achei muito legal ter essas pessoas comigo.;
Tiganá, que canta Os imigrantes, lhe foi apresentado pela baiana Márcia Castro. ;Queria ter um representante negro no disco, e a voz do Tiganá é muito bonita, uma voz ancestral;, comenta. Criolo foi uma indicação de Marcelo Cabral, que estava produzindo o disco do cantor (Nó na orelha, outra ótima novidade deste semestre). Lucas Santtana, que canta e assina a letra de O deus que devasta mas também cura, veio por intermédio do irmão de Gui, Rica Amabis. E Tulipa Ruiz ele já conhecia, porque Céu havia participado do CD de estreia dela. ;Sou apaixonado pela voz da Tulipa. E achei que aquelas duas músicas (Sal e amor e Ao mar) ficariam lindas na voz dela. Liguei e ela topou;, conta.
Se no disco ele ficou com apenas uma faixa para cantar, no show já se arrisca em seis. As outras dependem de quem estiver disponível na data da apresentação. Laura Lavieri, cantora que divide o palco com Marcelo Jeneci, já está de prontidão para quando Céu e/ou Tulipa não puderem comparecer. Com banda montada e à frente do barco, o marinheiro de primeira viagem tem tudo para ir longe.
MEMÓRIAS LUSO-AFRICANAS
Primeiro disco de Gui Amabis, produzido por ele. Independente, 10 faixas. Preço sugerido: R$ 15. Disponível para download gratuito em www.guiamabis.com.