Diversão e Arte

Em entrevista, Bráulio Tavares defende a verdadeira cultura nordestina

José Carlos Vieira
postado em 12/06/2011 09:30

Ele nasceu em uma família cheia de jornalistas e poetas, em Campina Grande (PB). O ano era 1950. Estudou cinema em Minas Gerais, ciências sociais na Paraíba e hoje mora no Rio. Fez de tudo, tocou em bandas de rock, traduziu obras de escritores famosos (principalmente literatura fantástica), foi roterista dos Trapalhões, compôs músicas, organizou festivais de repentistas, escreveu peças de teatro e publicou mais de 10 livros. Bráulio Tavares é uma geleia geral paraibana. Compara Brasília a um cenário de ficção científica e defende a verdadeira cultura nordestina.


Chico César, secretário de Cultura da Paraíba, proibiu a liberação de dinheiro público para eventos estinados ao ;forró de plástico;. O que você acha dessa polêmica? O forró tradicional está em extinção?
Existe na Paraíba uma lei estadual prevendo esse critério de apoio para as festas juninas. Chico César apenas tomou a iniciativa de pôr a lei em prática. Eu sou a favor, porque se trata de uma batalha desigual, de milhares de pequenos trios de forró pé-de-serra enfrentando essas bandas que cobram cachês de R$ 50 mil, R$ 100 mil ou mais, sugam todas as verbas dos eventos, e tocam uma música que não é forró, é uma mistura de lambada, carimbó, etc. Não defendo a extinção dessas bandas, mas acho que o Poder Público pode intervir e corrigir essas distorções. Todo governo age para regular um mercado que está em desequilíbrio devido a monopólios, trustes, etc. Pagamos aos governos para isto. O forró tradicional não está em extinção, está apenas colocado em segundo plano nas festas juninas, um dos poucos momentos em que esses músicos faturavam maior número de shows e melhores cachês.

O nordestino está perdendo sotaque, referências tradicionais... a identidade. É culpa de quem? Da tevê? Da urbanização desenfreada? Da globalização? Não parece a história dos índios os espelhos dos brancos ?
Todo mundo muda de sotaque, de referências, o tempo todo. Nordestinos, cariocas, paulistas, norte-americanos... Não acho que caiba a palavra ;culpa;. Nós desencadeamos fenômenos fortíssimos, como as telecomunicações (rádio, TV, internet), em cima de uma população muito comunicativa, sequiosa de informação. Claro que vai haver mudanças radicais e imprevisíveis. A questão dos espelhos e dos índios não se aplica a isso. Acho que se aplica a certas situações em que um nordestino se envergonha de ser nordestino (jeito de falar, hábitos, cultura, etc) e fica tentando imitar os hábitos de pessoas de outra origem. Por exemplo: ter vergonha de chapéu de couro e gibão, e achar que se vestir de ;texano; é mais chique. Isso tem que ser discutido. É mero complexo de inferioridade.

Para você, o que há de negativo e de positivo na invasão da internet nos lares do sertão?

Acho positivo que qualquer comunidade tenha mais acesso a informações variadas para escolher, entre elas, as que mais lhe interessam. O lado negativo é a manipulação das mentalidades para transformar a pessoa num robô consumista. Mas isso não afeta só o sertão, afeta também Higienópolis (SP) e a Vieira Souto (RJ).

Você e Glauco Mattoso são os últimos remanescentes da Antologia pornográfica, livro lançado em meados da década de 1980, nos últimos suspiros da ditadura. Fale um pouco do livro e também do Movimento de Arte Pornô... ele teria impacto hoje?
Eu e Glauco estamos vivos e atuantes, mas eu me afastei um pouco desse estilo de poesia. Não por ter algo contra, mas pelas circunstâncias, tenho escrito pouca poesia nos últimos anos. Outras pessoas continuam atuantes, como a Gang do Prazer (Cairo e Denise Trindade), que faz recitais aqui no Rio há muitos anos. O impacto hoje é menor porque o palavrão é liberado. Nas novelas da Globo já se fala ;bunda;, ;porra;, etc. O importante é que, mesmo que os poemas tenham perdido seu valor terapêutico, liberatório, não tenham perdido seu valor literário. Isso quem pode dizer é o leitor.

O que significa poesia marginal? Quando e como decidiu encarar a poesia como forma de expressão?
Poesia marginal foi um rótulo momentâneo. Cada um era marginalizado (não publicava nas grandes editoras) por diferentes motivos. Depois que vim morar no Rio descobri que essa palavra tem aqui uma carga negativa muito forte. Autointitular-se poeta marginal era como dizer: ;Sou um poeta assassino, um poeta estuprador;. Pegava mal em muitos momentos. Eu sou de uma família de poetas pelo lado paterno, lá em casa era Castro Alves no café da manhã, Augusto dos Anjos no almoço e Cecília Meirelles no jantar.

Escritor, poeta, roteirista, pesquisador de arte popular, cantor, blogueiro... dessas ondas, qual a que você mais surfa?
Eu sou apenas escritor e compositor. O resto são marcas de fantasia.

E o cinema? Zé do Caixão ou Werner Herzog?
Entre os dois, gosto mais de Herzog, um cineasta muito versátil, que tem uma temática dark, gótica, misteriosa, com quem me identifico muito. Mas curto bastante Zé do Caixão.

Você não acha que o cinema brasileiro está ficando hollywoodiano demais? É uma tendência? Nunca mais surgirá algo como o Cinema Novo, com linguagem própria?
O cinema segue fórmulas para conquistar público, e nesse ponto está se tornando parecido com a televisão que, antes de criar um projeto, pesquisa o que pode dar mais certo. Tem um lado hollywoodiano na forma de narrar, porque nunca se publicaram tantos manuais de roteiro. Todo mundo escreve de acordo com o bê-á-bá da cartilha de Syd Field, de McKee, de fulano, de sicrano... Os filmes ficam todos parecidos uns com os outros e nenhum deles fica parecido com Chinatown. O próximo Cinema Novo surgirá na internet e será disseminado de forma viral em notebooks, palmtops, iPads, etc. Será um cinema em tempo real.

Você chegou a escrever textos para os Trapalhões na década de 1980, auge do grupo. Como foi essa experiência?
Muito boa, me permitiu entender melhor como a tevê funciona, como as coisas são feitas, como são preparadas. E as reuniões para discutir os esquetes eram muito divertidas, horas de risadas, que não acabavam nunca. Quinze humoristas em volta de uma mesa, a tarde inteira, o que saía ali não estava no gibi.

A literatura fantástica é uma de suas grandes paixões. Há mercado para esse gênero no Brasil? E na ficção científica (FC), temos bons escritores?

Há um mercado pequeno, mas crescente. Está aumentando o número de bons livros traduzidos, tanto dos clássicos da FC quanto do pessoal jovem, caras que estão publicando ótimos livros de 10 anos para cá. Em São Paulo há um grande número de editoras voltadas para esse público: Aleph, Devir, Terracota, Tarja, Draco, Giz, etc. Todas vendem bem o que publicam. E temos bons escritores, embora tenhamos que ser comparados sempre com os grandes nomes da Europa e dos EUA. A FC brasileira está encontrando seus caminhos. No momento organizo uma antologia de FC brasileira para a editora Casa da Palavra (RJ), com textos que vão dos anos 1880 até 2010.

Quais lembranças você ainda leva do tempo do show Trupizupe, o raio da silibrina? Você chegou a se apresentar em Brasília?
Eu gosto de fazer recitais com voz e violão onde canto minhas músicas, recito meus poemas, conto histórias verdadeiras que parecem inventadas e histórias inventadas que parecem verdadeiras. Creio que nunca fiz um desses meus shows em Brasília. Já fui à capital acompanhando uma caravana de repentistas, já fui com peça de teatro, já fiz muitas palestras... Acho que ainda não levei meu ;espetáculo-aula;, que é como o chamo, para distinguir das ;aulas-espetáculo; de Ariano Suassuna.

Dá para viver com o dinheiro que ganha de direito autoral?
Só de direito autoral, não dá para viver. Eu tenho mais de 20 livros publicados, e umas 60 músicas gravadas (num total de umas 100 gravações diferentes). Não dá para viver disso. Eu vivo de fazer palestras, escrever para jornais e revistas, traduzir livros, fazer roteiros para TV e cinema.

De Brasília, qual foi sua primeira reação ao conhecer a cidade de Niemeyer e Lucio Costa?
Fiquei encantado com Brasília quando a conheci em 1970, aos 20 anos, com o dobro da idade dela. Parecia uma cidade de ficção científica. Gosto muito do espaço aberto de Brasília, do céu, dos gramados, do jeito dos prédios. Não gosto do fato de ela não receber bem o pedestre (eu não sei dirigir automóvel). Gosto do cosmopolitismo, em qualquer mesa de 20 pessoas tem gente de 10 lugares diferentes.

Quais são seus projetos agora?
Estou lançando (uma cidade por mês) o livro A nuvem de hoje (Editora da EUPB, Campina Grande), uma coletânea de meus artigos para jornal e no blog Mundo Fantasmo (dia 26 de maio, em João Pessoa). Também estou finalizando traduções de clássicos da literatura fantástica: O fantasma de Canterville, de Oscar Wilde (para a editora Casa da Palavra), Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de R. L. Stevenson (para a Editora Hedra), e A Ilha do Dr. Moreau, de H. G. Wells (para a Alfaguara). Há também uma coletânea de contos e uma antologia de FC brasileira para a Casa da Palavra.

Poema

Cais do corpo
Bráulio Tavares


eles
que têm
uma mulher
em cada porto

elas
que têm
um homem
em cada navio

(quente é o cais do corpo,
quando o mar é frio)



Nordeste independente
De Bráulio Tavares e Ivanildo Vilanova

Já que existe no sul esse conceito
Que o nordeste é ruim, seco e ingrato
Já que existe a separação de fato
É preciso torná-la de direito
Quando um dia qualquer isso for feito
Todos dois vão lucrar imensamente
Começando uma vida diferente
De que a gente até hoje tem vivido
Imagine o Brasil ser dividido
E o nordeste ficar independente

Dividido a partir de Salvador
O nordeste seria outro país
Vigoroso, leal, rico e feliz
Sem dever a ninguém no exterior
Jangadeiro seria senador
O cassado de roça era suplente
Cantador de viola o presidente
E o vaqueiro era o líder do partido
Imagine o Brasil ser dividido
E o nordeste ficar independente

Em Recife o distrito industrial
O idioma ia ser nordestinense
A bandeira de renda cearense
"Asa Branca" era o hino nacional
O folheto era o símbolo oficial
A moeda, o tostão de antigamente
Conselheiro seria o inconfidente
Lampião, o herói inesquecido
Imagine o Brasil ser dividido
E o nordeste ficar independente
O Brasil ia te de importar
Do nordeste algodão, cana, caju
Carnaúba, laranja, babaçu
Abacaxi e o sal de cozinhar
O arroz, o agave do luar
A cebola, o petróleo, o aguardente
O nordeste é auto-suficiente
O seu lucro seria garantido
Imagine o Brasil ser dividido
E o nordeste ficar independente

Povo do meu Brasil
Políticos brasileiros
Não pensem que vocês nos enganam
Porque nosso povo não é besta.

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