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Diversão e Arte

Paulo César Pinheiro inventa narrativa engenhosa no livro Matinta, o bruxo

Quando se fala que um compositor decidiu escrever um romance, logo se acende um sinal de desconfiança. Mas Paulo César Pinheiro não é uma celebridade; é um poeta. À medida que enveredamos por Matinta, o bruxo, segunda ficção de Pinheiro, a dúvida vai se desfazendo. Para quem não se lembra, ele é autor de sambas clássicos (Lapinha, Aviso aos navegantes, Samba do perdão, entre outros) e, na verdade, o seu livro nasce da fusão de duas canções: Matita-perê, em parceria com Tom Jobim, e Sagarana, com João de Aquino. Desde o início, fica claro que o caso não vai render nenhum happy end.

É uma história de amor e vingança, simples, mas engenhosa e escrita com um luxo barroco de linguagem e um estilo contundente, para ser lida de um só fôlego. A trama narra a trajetória de João, um pacato lavrador, que se encanta perdidamente e se casa com Doralinda, uma mulata de olhos felinos e formas barrocas. Aliás, o desenho das mulheres é um dos pontos altos da narrativa pela sensualidade e vivacidade que Paulo César Pinheiro insufla nas figuras femininas: ;Doralinda tinha o cabelo de caramelo queimado, escorrendo achocolatado até as espáduas. A morenez que se quer na pele gramada de penugem de ouro fino cintilante. Seios de suculentas pêras querendo, maliciosamente, cabriolar do decote. (;) Quando vi Doralinda no campo quis colher sua flor. Em ramaria aveludada, todavia, espinho embutido. Invisível pra quem ama;.

Certo dia, ao voltar da lida no campo, João flagra a sua mulher em pleno ato de traição com o filho do poderoso coronel Graciano e, em um rompante, mata os dois com uma violência desmedida. A partir daí, João passa a ser um cabra marcado para morrer, perseguido implacavelmente pelos capangas do coronel Graciano, errando nos descampados do sertão, armando guerrilhas, alertado da presença dos inimigos pelo canto do pássaro Matinta-perê.

Dramaticidade
Com o desencadear dos acontecimentos, a narrativa se impregna de intensa dramaticidade, pois, apesar de toda a astúcia sertaneja de João na arte da guerra, o encontro com a morte é mera questão de tempo, medido em contagem regressiva: ;No início da madrugada, farfalho de folhame e estalido de ramo seco delatavam intrusa presença de criaturas. Animais noturnos são silentes, portanto era espécie humana. Ligou radar de andirá. Acionou visão de caburé. Aguçou olfato de suçuarana. Conectou sonar de guaracão. E com tal tecnologia avançada aguardou a investida de milícia;.

Matinta, o bruxo pressupõe Guimarães Rosa. O compadre Amâncio, poeta cego, sempre soprando sábias prescrições, evoca o personagem do Compadre Quelemém, de Grande Sertão: Veredas, filósofo sertanejo, ajudando a explicar o inexplicável sob a luz dos ensinamentos espíritas do kardecismo. ;Com mulher que não consegue recusar, não se deve enamorar;, havia sentenciado mestre Amâncio, quando João se engraçou por Doralinda.

Mas, apesar da filiação a Guimarães Rosa, Pinheiro fala com voz própria. Há aspectos engenhosos na narrativa, tais como as múltiplas máscaras que João usa para dissimular a sua verdadeira identidade e escapar dos seus perseguidores: Chico, Antônio, Matias, Pedro e Horácio. A cada nome corresponde uma metamorfose do ser, de lavrador a jagunço, em uma gradação cada vez mais alta de convicção e violência. O reparo a se fazer é que, algumas vezes, a truculência parece ser representada com uma brutalidade que soa gratuita em uma prosa tão permeada de ardilezas. No entanto, o melhor do livro está na fluência barroca, no luxo da linguagem e nas epifanias de Paulo César ao desfiar as aventuras e desventuras deste personagem empurrado para a solidão extrema, acuado no próprio corpo: ;A mudança ocorrera. Não havia mais temor em seu comportamento. Só prudência. Andarilhava, a partir daí, na diretriz do perigo, em rota de confrontação;.


Matinta, o bruxo
De Paulo César Pinheiro. Ilustrações de Marcílio Godoi. Editora Leya, 112 páginas. Preço: R$ 29, 90.