Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Ópera Cavalleria rusticana mistura paixões, traições e vinganças

Na Sicília do século 19, lavar a honra era coisa séria. Vingança, traição, mentira, quase tudo podia virar motivo de violência extrema. O século 21 não anda muito distante das brutais fórmulas sicilianas. É fácil ; e quase comum ; encontrar manchetes que anunciam crimes passionais. Portanto, a Cavalleria rusticana que o público brasiliense poderá conferir hoje na Sala Villa-Lobos não tem uma história extraordinária e lembra uma ciranda amorosa. Santuzza ama Turiddu que ama Lola, casada com Alfio. A cena se passa na cantina de Mamma Lucia. Na versão brasiliense dirigida por Francisco Frias, Turiddu, originalmente um soldado que retorna da guerra, é caixeiro viajante e Alfio, fazendeiro.

Ao retornar de uma viagem, o caixeiro precisa enfrentar a realidade de ver sua amada casada com o fazendeiro poderoso. Começa então um relacionamento com Santuzza, mas a paixão pela outra induz a maus-tratos e desprezo. O emaranhado de amores e ódios resulta numa história romântica e cheia de lugares-comuns, como boa parte das narrativas de óperas do verismo período durante o qual se convencionou fazer libretos com situações inspiradas na vida real. Fora do comum é mesmo a música de Pietro Mascagni, com o intermezzo muito romântico e um tema melódico e delicado.

O desafio para os cantores ; especialmente para a soprano encarregada de Santuzza ; é segurar a emoção. ;É um papel vocalmente pesado e muito denso, se a cantora colocar muita emoção pessoal a voz pode ficar embargada;, explica Janette Dornellas, que canta na récita de hoje e encena o papel pela terceira vez. Chris Dantas, a Santuzza da apresentação de amanhã, precisou se controlar muito para afinar os próprios sentimentos com a tristeza da personagem, cujo amor não correspondido pesa e destrói.

Aos 34 anos, acostumada a cantar jazz e música popular, a soprano brasiliense nunca havia subido ao palco para cantar uma ópera. ;É uma novidade. E sou muito emotiva, tive de aprender a não chorar enquanto cantava. Meu corpo tem de aparentar o sentimento da personagem e eu preciso controlar o meu sentimento. Sou muito diferente da Santuzza;, explica Chris. Quando ela fez audição para o espetáculo, pretendia apenas tornar a voz conhecida. ;Não imaginei que faria um papel principal.; Amanhã, ela troca o quarteto de jazz com o qual está acostumada pela Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro sob regência de Claudio Cohen, o maestro titular.

Nadja Lopes, 24 anos, outra estreante, também se esmerou para se transformar em Lola. ;Tive que tirar do baú minhas experiências. Lola é uma mulher casada, é aquela que bagunça a vida de todo mundo. Não é malvada, mas está numa encruzilhada amorosa, vive um turbilhão de sentimentos e ao mesmo tempo é um pouco inconsequente, boba, ingênua;, avalia a cantora, que já cultiva um ;friozinho; na barriga para a apresentação de amanhã. Nadja estreia como solista em uma produção completa. ;Ópera é minha paixão eterna, estudei 10 anos para isso;, avisa. Para Andreia Maulaz, 28 anos, a Lola da récita de hoje, o papel exige cuidado vocal. ;Na verdade é um papel para mezzo-soprano e fica numa região de voz mais grave. O mais importante cenicamente é o contraste com Santuzza, que é uma personagem mais densa, mais pesada.;

Estudos
A quantidade de estreantes também é significativa no coro de 60 pessoas. ;Esse festival é muito importante exatamente por isso, Brasília estava sem ópera há sete anos e tem muita gente boa estudando que não tem onde cantar. E todo mundo sabe que você aprende mesmo é no dia a dia do trabalho;, avalia o mineiro Sebastião Teixeira, 56 anos, o Alfio da récita de hoje. ;O próprio Gustavo é um achado.; O barítono Gustavo Rocha, 25 anos, estuda canto e educação física. Encorajado pelo professor Francisco Frias, também diretor da ópera, começou a estudar o papel de Alfio e acabou selecionado.

;Minha ária é complicada, tem saltos e a construção não ajuda muito a subir para o agudo.; Experientes no palco, além de Sebastião, só mesmo Janette Dornellas, 46, e Martim Muehle, 42. Ela tem 25 anos de carreira em Brasília e já fez Santuzza três vezes. Ele, gaúcho radicado em São Paulo, cantou como contratado no Teatro de Bremerhaven, na Alemanha.

Cavalleria rusticana é a penúltima apresentação do 1; Festival de Ópera de Brasília, que se encerra na próxima terça. A montagem de hoje aproveita os cenários e figurinos de Pagliacci, encenada na semana passada, um recurso utilizado pela direção do festival para minimizar os gastos e possibilitar a produção de duas óperas.

A estrutura idealizada por Francisco Frias é a mesma apresentada em Pagliacci: personagens típicos de uma cidade do interior se reúnem, dessa vez numa cantina, para participar e assistir ao imbróglio amoroso entre Santuzza, Lola, Alfio e Turiddu.

;Cada coralista tem um personagem para defender, o coro não é simplesmente uma massa sonora. Claro que o público não percebe os personagens e suas historinhas, mas percebe uma vida no coro e é isso que dá vida ao espetáculo;, garante Frias. O diretor inseriu alguns detalhes na versão brasiliense que não constam no libreto original, como a supressão do duelo final e uma condição especial (e surpresa) para Santuzza.

Cotidiano
O verismo foi uma corrente literária italiana que também impregnou a ópera do século 19. Os compositores rejeitaram temas míticos, históricos e épicos para se inspirar no cotidiano com histórias corriqueiras pautadas principalmente pela música romântica. Puccini, Ruggero Leoncavallo e Pietro Mascagni eram os compositores mais populares do verismo na Itália, mas alguns estudioso dizem que o movimento iniciou com Carmem, do francês Georges Bizet.