Parece que Rubem Braga tinha afixado na testa um cartaz com os dizeres: ;Cuidado, cronista feroz, não chegue perto. Ele morde principalmente jornalistas curiosos e intelectuais metidos a besta;. Mas, apesar de sempre ter praticado o antimarketing pessoal, ele é o mais amado cronista brasileiro, pois espalhava, generosa e democraticamente, a sua ternura vagabunda pelos seres e situações mais triviais do cotidiano. Conferiu beleza e dignidade às coisas simples. Sem pretensão, em tom de conversa fiada, inventou uma arte de escrever e de viver.
Com astúcias de caboclo modernista, Braga sempre se recusou a ser príncipe ou múmia oficial da crônica. Ao saber que Sérgio Porto o apelidara de ;sabiá da crônica;, ele prontamente fulminou: ;Preferia ser um urubu, ave pesada e mais triste;. Era um jornalista de carteirinha, mas detrás do jornalista havia um escritor, um poeta, um humanista e um humorista. O claro enigma Rubem Braga é o tema dos Cadernos de Literatura do Instituto Moreira Salles.
O texto de apresentação do caderno anuncia uma bela pauta para a edição: reavaliar o lugar da crônica como a maior contribuição das letras brasileiras para a história dos gêneros literários e o de Rubem Braga como o maior cronista desta tradição. A revista não diz, mas, na verdade, pressupõe o texto clássico em que Antonio Candido, talvez o mais importante crítico literário brasileiro, exalta as vantagens da crônica, mas a situa na condição de gênero menor. Ele argumenta que a ninguém ocorreria conferir o Prêmio Nobel de Literatura a um cronista.
José Castelo toca, de relance, no cerne da questão ao reafirmar Braga como inventor da crônica moderna: ;Ainda hoje, muitos cronistas ignoram a revolução de Braga e seguem a fórmula antiga: escrevem crônicas para registrar eventos, para comentar, para interpretar, para defender ideias. Fazem jornalismo, colunismo, crítica de arte, comentário político, proselitismo ; mas não escrevem crônicas;.
Castelo se esforça para mostrar que Braga considerava a crônica, em seu descompromisso, ;não um gênero menor e circunstancial, mas, ao contrário, como o gênero dos gêneros. O lugar para o qual todos os gêneros confluem e onde todos eles se põem à prova;. Contudo, é Sérgio Augusto, no ótimo ensaio intitulado Flautas, melancias e colibris, quem parece chegar mais próximo de uma definição convincente ao escrever ;que não existem gêneros menores, mas apenas autores menores;.
De qualquer maneira, chegamos ao fim da leitura com a sensação de que, exceção feita ao já referido ensaio de Sérgio Augusto, os Cadernos não cumprem plenamente a promessa de mostrar a crônica como uma contribuição singularmente brasileira e Rubem Braga como o seu grande inventor. Faltou esclarecer de maneira mais precisa no que consiste a revolução de Braga, pois, sob a inspiração da liberdade do modernismo, ele ampliou os limites do gênero nos rumos da subjetividade. A partir dele, qualquer pretexto passou a ser tema da crônica: o conto, a carta, o devaneio lírico, a evocação, a divagação vagamente filosófica, o poema em prosa, o quase assunto e até a falta de assunto.
Nem por isso esta edição dos Cadernos deixa ser interessante e de compor um retrato muito vivo de Rubem Braga, com a agilidade e a leveza de uma crônica: a relação com as mulheres (Danuza Leão), o trabalho de correspondente de guerra (Boris Schnaiderman), a estada no Rio de Janeiro (Humberto Werneck), as espécies cultivadas em seu jardim na célebre cobertura habitada pelo cronista em Ipanema (texto inédito de Rubem Braga): ;A verdade é que o jardim reflete um pouco a gente, o meu é desarrumado como eu;, escreveu o cronista.
Danuza conta que quando queria conquistar uma bela mulher, ele não fazia nada: só olhava fixamente, sonhando acordado, estivesse a dama acompanhada ou não do marido. Com esta técnica de sedução de bicho do mato, muitas beldades caíram nos braços de Braga.
E, para fechar, fiquemos com um fragmento da crônica Carta ao prefeito, revelador da atitude de Braga em preferir o trivial ao espetacular ou de transformar o trivial em poético: ;Não sou covarde como esses equilibristas estrangeiros que passeiam sobre fios entre os edifícios. Vejo-os lá em cima, longe dos ônibus e lotações, atravessando a rua pelos ares e murmuro: eu quero ver é no chão.;