Da dificuldade de se encontrar atrizes para uma cena de beijo até estruturação incipiente, no exemplo da Argélia, que só teve o Centro Nacional Audiovisual instituído em 2004, passando pela reativação de desfalcados circuitos ; o cinema árabe enfrenta muitas barreiras até chegar aos espectadores. Ciente disso, Nágila Guimarães, uma das curadoras da Mostra de Cinema Árabe ; a partir de hoje, no Centro Cultural Banco do Brasil ; se dispôs à meta: ;Quis ser bem abrangente na seleção dos temas e contar com o maior número de países representados;. O resultado está no agrupamento de 17 filmes produzidos por 10 países, entre os quais, Iraque, Jordânia, Líbano e Egito.
;Cinema é uma forma de se contatar com outros países: dá para tirar um pouco do mundo e levar junto;, compara Nágila Guimarães, parceira na curadoria de Lina Menzli e Dora Bochoucha. Iniciativa que tem agregado parte do Oriente Médio, com relevância de traços africanos e asiáticos, o florescimento de festivais como os de Dubai, Abu Dhabi (Emirados Árabes) e Doha (no Catar) mobiliza produtores e realizadores de países que, progressivamente, contam com fundos para a estruturação maior dos roteiros de cinema, avalia a curadora. Aos 49 anos, ela vivencia, na condição de produtora e de ;moradora do mundo, há 24 anos;, um punhado de festivais no exterior. Nágila está atenta a casos como o de Cidade da vida (2009), título selecionado para o CCBB e que marcou a entrada dos Emirados Árabes no panorama de cinema internacional. ;Foi o primeiro com qualidade suficiente para o posto. O diretor Ali Mostafa captou muito bem a diversidade étnica na região ; aquela Torre de Babel, repleta de diferenças de classes;, comenta.
Referências
O caldo de referências alheias ao dito mundo árabe também se engrossa, uma vez que muitos dos jovens cineastas têm formação fora do país de origem, como é o caso do marroquino Nour Eddine Lakhmari, muito valorizado na Escandinávia e representado na mostra por Casanegra (2008), filme em torno de regeneração e delinquência. ;Os estudos no exterior formam realidades que acrescentam e não descaracterizam as culturas;, observa a curadora.
Também saído do país de origem, o sírio Joud Said dirige Outra vez (2009), longa voltado a um caso de amor cerceado pelas circunstâncias da guerra civil com a interferência Síria em território libanês, que, por sinal, traz à tona os limites da ficção no cinema examinado. ;É uma parte do mundo tão conflitante, então, como eles poderiam lidar com isso apenas na ficção? Uma coisa (a realidade) entra na outra (ficção), de forma quase orgânica;, analisa Nágila Guimarães.
Instabilidade com atentados, processos sangrentos de independência, intolerância na pluralidade religiosa e sanções econômicas internacionais são alguns dos quebra-cabeças comuns a países representados na mostra do CCBB.
Catadores de papel
Daí, brotarem enredos como os de Porto da memória (2009), centrado na questão territorial, a partir da ação de despejo de uma família da área Palestina, antes de 1948; de Caindo por terra (2008), do estreante Chadi Zeneddine, voltado para a reintegração de Beirute almejada pelos esperançosos libaneses e de Reciclar (2007), um documentário da Jordânia, a postos para denunciar a dura realidade de um ex-soldado, pai de oito filhos que, na cidade do abatido líder da Al-Qaeda Abu Masab az-Zarqawi, presencia a falta de perspectivas dos filhos entregues à rotina de catadores de papel.
Confira o trailer do filme Filho da Babilônia
;Não se mostra apenas um mosaico de mártires. Não são representadas apenas vidas sofridas. Nos filmes, vemos amor, alegria e dor, em doses equilibradas. O Brasil nunca passou por uma guerra, mas as pessoas podem se conectar com os filmes que contemplam a humanidade, em geral. Falam de doçura e sonhos;, observa Nágila Guimarães. A crença em melhores condições é extravasada na expressão internacional alcançada por cinematografias ricas de países pequenos como a Tunísia, sempre exaltada pelo teor de liberalismo.
Confira trailer do filme Microfone
;É um local em que a mulher se emancipou mais cedo, mas, alguns filmes de lá são objeto de polêmica. Apesar de muito sutil no registro de nudez, o filme Segredos enterrados (de Raja Amari, selecionado para mostra paralela do Festival de Veneza) lida com o grande tabu que é o incesto;, comenta Nágila, ao falar do cinema da autora de Satin rouge (2002), um filme detido nas mudanças experimentadas por uma viúva que rompe barreiras sociais.
Alinhados à questão da independência feminina e integrados à mostra do CCBB, títulos conduzidos por mulheres, como Todo dia é feriado (2009) e Câmeras abertas (2009), demonstram o potencial de interesse dentro da programação com acesso gratuito: o primeiro se fixa nos destinos de libanesas que visitam os maridos na cadeia, enquanto o outro, um documentário, registra o empenho de iraquianas arregimentadas para um perigoso projeto fotográfico.
Mostra do Cinema Árabe
Centro Cultural Banco do Brasil (SCES, Tr. 02, Lt. 22, 3310-7087). De 28 de junho a 10 de julho, com sessões de terça a domingo. Hoje, às 17h30, exibição de Segredos enterrados (de Raja Amari), seguida de debate, às 19h. Não recomendado para menores de 14 anos. Entrada franca.
Assista ao trailer do filme Fora da lei