Paraty (RJ) ; James Ellroy se declara capaz de ser monogâmico. João Ubaldo Ribeiro confessa não gostar de Guimarães Rosa. Peter Estérhazy revela o segredo do pai. Valter Hugo Mãe vai às lágrimas ao declarar o fascínio pelo Brasil. Antonio Candido brinda a plateia com um sensível relato de memórias sobre a amizade com o modernista Oswald de Andrade. Na plateia da Tenda dos Autores, mais de 1,5 mil pessoas batem palmas, aplaudem a cada boa tirada e choram com os escritores. A Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) faz a literatura ganhar cara de blockbuster, mas desde a primeira edição, em 2002, cresceu em proporções tão grandes que começa a mudar um pouco de rumo.Organizada pela Casa Azul, uma ONG com sede em Paraty, e idealizada pela editora inglesa Liz Calder, a exemplo de um festival inglês, a Flip nasceu com o lema de independência em relação ao mercado editorial e a proposta de colocar os autores diante do público para discutir ideias e temas relacionados à literatura. Em sua nona edição, nem sempre o tema esteve à frente da intenção de vender o produto.
Pela primeira vez, as editoras começam a participar financeiramente da festa. ;A Flip não paga cachê. No começo não havia participação das editoras. Agora não, elas estão participando, elas ajudam na logística do autor;, diz Mauro Munhoz, diretor da Casa Azul. Ele garante que o mercado editorial não pauta a festa, embora boa parte dos autores convidados estejam coincidentemente em processo de lançar livros.
Tensão literária
Um dos momentos mais tensos desta edição da Flip foi a recusa do francês Claude Lanzmann em discutir o tema proposto pela organização do evento (na mesa A ética da representação). O escritor e cineasta, amigo de Jean-Paul Sartre e intelectual de peso na cena francesa da década de 1960, decepcionou público e organização. ;Estou aqui para falar do meu livro. Fale do meu livro ou vou embora;, ameaçou, para em seguida ganhar o título de convidado mais arrogante e grosseiro da festa.
Para o curador Manuel da Costa Pinto, a atitude foi lamentável. ;Alguns autores rejeitam perguntas complexas, mas, para uma pessoa como ele, que fez parte da geração existencialista, que justamente formulava perguntas complexas, isso é frustrante. É uma atitude nazista;, comparou Manuel (que depois fez um mea-culpa sobre o termo ;nazista;). Lanzmann é diretor de Shoah, considerado o documentário mais completo sobre o Holocausto, e autor das memórias A lebre da Patagônia.
A mesa do neurocientista Miguel Nicolelis também não escapou da venda de um projeto. O neurocientista concentrou a fala na apresentação de seu projeto de dissociação entre mente e corpo e ficou indiferente à provocação do filósofo e companheiro de mesa Luis Felipe Pondé. ;Somos todos eugenistas;, arriscou Pondé, diante das colocações de Nicolelis sobre a capacidade da ciência de confeccionar o bem-estar humano. Poderia ter rendido boa discussão.
Melhores momentos
O quadrinista Joe Sacco e o escritor João Ubaldo Ribeiro protagonizaram os melhores momentos da 9; Flip durante o fim de semana. O norte-americano (na verdade, nascido em Malta) que desenhou a intifada em Palestina aceitou o debate e refletiu sobre conflitos, jornalismo e quadrinhos. ;Vivendo nos Estados Unidos, a visão que eu tinha de um palestino é a de que era um terrorista. A razão pela qual fiz o livro é que na América você não ouve as vozes palestinas. É tudo muito concentrado na narrativa israelense.; Foi aplaudido com veemência.
Ubaldo contou histórias conhecidas e repetidas inúmeras vezes em entrevistas. Feliz, de bom humor, foi responsável pelo auditório mais lotado da Flip, uma redenção para quem recusou o convite da festa há sete anos por ver seu nome relegado à denominação ;outros; pela divulgação do evento.
Musa da Flip, a argentina Pola Oloixarac acabou ofuscada pelo português Valter Hugo Mãe, cuja sensibilidade conquistou a plateia. ;Choro até hoje com Tempo perdido;, confessou Mãe, que cultivava um imaginário mágico a respeito do Brasil durante a infância e adolescência. Entre os argentinos, quem brilhou mesmo foi Andrés Neuman. Ágil e informal, fez da mesa Viagens literárias um dos momentos mais divertidos da Flip. ;O romance é uma invasão de privacidade;, concluiu, após uma reflexão sobre cenas de sexo na literatura.
Também foi elegante o apoio de Ignácio de Loyola Brandão e Contardo Calligaris à decisão do italiano Antonio Tabucchi de cancelar a participação na Flip por conta da decisão do Supremo Tribunal Federal de não extraditar Cesare Battisti. Mesmo assim, não deu para imaginar como seria o protesto de Tabucchi ao vivo e em cores na Tenda dos Autores. Fez falta.
Byrne e a bicicleta
David Byrne não falou de música ontem em Paraty. Aliás, o cantor pouco tem falado de música. A campanha com a qual corre o mundo para sensibilizar os habitantes de grandes cidades para os benefícios do transporte sustentável ocupa boa parte do tempo e do discurso do ex-Talking Heads. Byrne não é exatamente um especialista no assunto e chega a ser ingênuo em suas proposições, mas é sincero e autêntico. Das andanças pelo mundo ele tirou Diários da bicicleta, lançado ontem, no último dia da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). "O livro é uma boa desculpa para envolver pessoas em outros países%u201D, brinca o músico, que esta semana promove em São Paulo um fórum sobre o tema. Depois de mostrar slides com imagens da presença excessiva de carros e da ausência de pessoas nas ruas de cidades americanas, Byrne concluiu: %u201CNão precisa ser assim. Quando ando de bicicleta, é possível ver coisas que não veria normalmente%u201D.
Depois de Byrne, os colombianos Laura Restrepo e Hector Abad fizeram a última conferência da Flip, que foi oficialmente encerrada com uma apresentação do Teatro Oficina Uzyna Uzona, de Zé Celso Martinez Corrêa. Após uma pequena confusão na entrada da tenda beira-mar, Zé Celso liberou a entrada da peça para todos que quisessem assistir à última celebração dedicada a Oswald de Andrade, o homenageado da festa. Em 2012, quando a Flip completa 10 anos, o homenageado será Carlos Drummond de Andrade.