;Na profissão de médico, eu posso conviver diretamente com a dor, a morte, o sofrimento e a alegria. Com pessoas que recebem cura ou enfermidade;, percebe o pernambucano Wilson Freire. Em seu curto romance de estreia, A mulher que queria ser Micheliny Verunschk (Edith), ele aplica à prosa a sensibilidade adquirida em pálidos corredores de hospitais e nas experiências como letrista, roteirista (de As três Marias, coescrito com Heitor Dhalia) e diretor (de Pela vida, pelo tempo, exibido no Cine PE há dois anos). É a primeira ficção de fôlego de um doutor que tem cacoete de artista. ;Acho que de, maneira geral, poucos profissionais têm intimidade tão forte com os sentimentos humanos quanto o médico. Estar disponível para reverter esses sentimentos em arte já é alguma coisa;, repara.
Micheliny traz em suas páginas ares marítimos de uma mulher que, desde pequena, só conhece a dor. Adolescente, foi apresentada ao sexo de jeito forçado. Crescida, quis ser escritora. ;Achava que as pessoas aprendiam a ler olhando as letras, as palavras dos livros e elas pulavam para dentro dos olhos e saíam pela boca;, ela diz, deixando escapar a ingenuidade de uma garota educada num ambiente masculino ; em zona portuária, de embarcações e machos locais e gringos ; e que chegou até a ingerir folhas inteiras de papel para tentar entender os textos. O resultado não poderia ser outro: enjoo e vômito. Mas foi assim, com fome de conhecimento, que ela atracou num porto mais humano, de novas experiências e sensações.
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Segundo Freire, sua narrativa baseia-se no comportamento do personagem principal. ;Quando escrevo, preciso escutar a voz do sujeito. E aí veio a história da mulher que queria escrever sua própria história, cantá-la, gritá-la;, conta. Quando a protagonista, não identificada, viu o nome Micheliny Verunschk pela primeira vez, tomou um susto. De quem é esse nome? ;Uma amante secreta de Napoleão Bonaparte?;, ela se pergunta. ;Uma espiã dos tempos de guerra?;, indaga-se linhas adiante. Nem um nem outro: Micheliny é fábula de uma menina que, como qualquer outra, não hesita em se entregar ao sonho e à imaginação.
O autor, que separa e monta os capítulos como as cenas de um script cinematográfico, acha que a ficção escrita possibilita uma nova experiência criativa. ;Personagens de cinema e literatura têm suas semelhanças. A trama, os percalços. A dedicação é a mesma para os dois. Mas você pode ser mais expansivo no romance, falar mais, enquanto o roteiro é algo mais delimitado;, demarca Freire.
Leia trechos do livro A mulher que queria ser Micheliny Verunschk
"Quando eu crescer, vou aprender a escrever para escrever tudo isso. Pensava. Daí surgiu o desejo, a vontade de ser escritora. As primeiras modificações do meu corpo começavam a aparecer e eu ainda era analfabeta. Achava que as pessoas aprendiam a ler olhando as letras, as palavras dos livros e elas pulavam para dentro dos olhos e saíam pela boca.
Comecei a folhear e espiar tudo que batia em minhas mãos. E elas não me diziam nada. Dei pra cheirá-las e elas só me diziam se eram velhas ou novas, a depender do papel que as continham. Por fim, comecei a comê-las. Quase morri empanturrada, de barriga inchada. Vomitei papéis e tintas até me aliviar. Mais tarde aprendi a catar sons e ritmos nas letras, nas palavras, nas frases. Descobri também suas cores e, por fim, encontrei o cheiro e o sabor delas. Tudo isso entrava pelos sete buracos ávidos da minha cabeça e eu me deliciava. Fazia tudo escondida. Mas já desconfiavam do meu jeito estranho diante das coisas."
"Fui buscar água cristalina na bica e a trouxe fresca em uma bilha. E a despejei até encher aquele aquário; colhi ervas aromáticas nas matas; peguei sabão cheiroso da terra, lençol de seda chinesa; uma toalha de algodão, macia e aquecida. E ele me pediu que desamarrasse os cadarços dos seus sapatos apertados e os jogassem fora e, lentamente, o despisse. Se não desejasse que nu eu o visse, fechasse os olhos e os seus comandos eu só seguisse. Tinha uns poucos panos sobre seu parco corpo. Modesto. Pobre de gestos. As minhas mãos tatearam e desabrigaram cada botão da sua camisa, tocando leve sua pele em pelos; desabotoando a sua braguilha, rocei meus dedos nas suas virilhas; aí lavei seu cheiro de peixe, cheiro de convés, de porão, mares e marés, de outros portos, de outras fêmeas, de outras entranhas, perfumes, fumos, bebidas e apaguei mordidas, marcas de batons, tatuagens, todas as memórias, para depois que o enxugasse, nele gravasse as minhas marcas e escrevesse a minha própria história."