postado em 20/07/2011 10:40
Quando Glauco Mattoso, que completou 60 anos no último 29 de junho, era menino, já sabia que a cegueira, algum dia, chegaria para ficar, como um pesadelo noturno que se tornaria um desespero real. ;Minha doença era uma forma muito grave de glaucoma, que nem a do Ray Charles.Com operações, consegui adiar;, conta. O mal que tirou definitivamente sua visão grudou nos olhos do escritor paulistano em 1995. E Pedro José Ferreira da Silva, inserido em mais uma esfera de discriminação ; ele é gay e tem fetiche por pés ; preferiu se levar menos a sério do que, quem sabe, ;enlouquecer com a limitação;. Ele fez de Glauco Mattoso o pseudônimo que ri dos problemas de saúde.
E, da sua escrita, a impressão do desabafo. Em Tripé do tripúdio e outros contos hediondos, publicado numa edição cuidadosa do selo Tordesilhas, ele leva os extremos da sua literatura ; entre o bom humor e a crítica que combate a hipocrisia cruel dos costumes sexuais ; para a prosa, em textos que aproximam o poeta do contista. Numerados, alguns dos seus mais de 4.500 sonetos são complementados com narrações que desnudam uma ligação permanente entre vida e arte.
Para Mattoso, não existe ficção desgarrada de experiências particulares: especulação e invenção estão, de alguma maneira, firmadas na realidade. ;Acredito que toda literatura, pelo menos a forte, a autêntica, tem que ter um vínculo com a vida pessoal do autor. Não acredito naquela totalmente inventada, fantasiosa, que você tira do nada. Mas é claro que você tem uma certa dose de liberdade para, não digo fantasiar, mas pelo menos distorcer um pouco;, argumenta.
A voz de um excluído
Nas 25 histórias de inspiração própria, de seus poemas, ele é personagem ; ora protagonista, ora ouvinte curioso ; de relatos ofensivos à moral sexual considerada sadia, que entorta o nariz para fetiches, vícios e taras. Além da já conhecida podolatria, a afronta de Mattoso chega ao sadomasoquismo e à escatofilia: perversões redigidas com a verve de um solitário que fala de si e dos outros. ;Me identifico e me solidarizo com outros excluídos. Incorporo ao meu imaginário experiências de outros, relatadas por terceiros;, informa.
Mattoso é um libertário, mas não um adepto da poesia livre. É o inverso: exige de si atenção irrestrita à métrica, como se estivesse escrevendo sob a pressão de regras imutáveis. ;No Brasil, , depois do modernismo, teve essa história de que o soneto é coisa parnasiana. A geração de 1945 recuperou o soneto, mas era uma coisa considerada retrógrada, como se o que valesse mesmo fosse a vanguarda concretista. Não é verdade. Existe espaço para a vanguarda. Mas não se pode sepultar o soneto. Poesia rimada e metrificada estimula um desafio. Você tem uma disciplina e tem que corresponder. É um chicote literário e um incentivo. Considero o soneto quase como um vício, como se tivesse que fazê-lo para me manter vivo;, constata.
Nas páginas de Tripé, ele exibe uma espécie de lado b do ;poeta maldito;, que, aliás, também é compositor e já caminhou com seu espírito venenoso de paródia no terreno das histórias em quadrinhos e na imprensa, nos anos 1980 e no início da década seguinte. ;Cada conto tem a ver com o tema de um poema que já tinha feito. É contar o soneto com outras palavras. É, também, uma forma de se envolver com o tema, não ficar preso ao que é contado no soneto;, avalia. Mundano e underground, Mattoso transgride a frágil superfície que ampara convenções e preconceitos de cabeça erguida ; e com um espesso par de óculos escuros.