Quando um filme de Pedro Almodóvar entra em cartaz, o cinéfilo sabe o que esperar: as cores quentes, as paixões febris, o riso atrevido, o furacão sentimental dos melodramas. São traços de estilo que moldaram uma das grifes cinematográficas mais conhecidas nas últimas três décadas. Mas que, há algum tempo, deixaram de satisfazer o cineasta mais amado da Espanha. ;Não paro de me libertar de mim mesmo;, afirmou o autor de 61 anos, em entrevista para o livro Conversas com Almodóvar, do crítico francês Frederic Strauss. ;Minha independência reside não em fazer os filmes que as pessoas querem que eu faça, mas nos filmes que quero fazer;, concluiu.
Os amores em tons vibrantes, de arder pupilas, não faltam à trajetória de 18 longas-metragens do diretor ; uma filmografia que será exibida integralmente (à exceção do mais recente, A pele que habito) na mostra El deseo: o apaixonante cinema de Pedro Almodóvar, em cartaz a partir de hoje, no Centro Cultural Banco do Brasil. Tudo de graça. Resumir a arte do cineasta em uma ou outra referência pop, no entanto, é conhecer apenas uma parte pequena dessa biografia. Porque, desde o fim dos anos 1970, as invenções do espanhol acompanham as transformações e o refinamento de um olhar ; são espelhos para experiências pessoais. ;O cinema não é simplesmente uma parte da minha vida. É a minha vida, por inteiro.;
O que poucos sabem é que, apesar da maestria visual, a maior obsessão de Almodóvar não está no colorido rascante das imagens: são as palavras que, acima de tudo, o fascinam. E, depois das palavras, as histórias. Escrever um romance talvez seja um dos poucos desejos que ainda não teve coragem de praticar. ;A escrita é uma arte que ultrapassa o cinema;, admitiu, a Strauss. Foi nos filmes, no entanto, que o menino provinciano de Ciudad Real se aconchegou. ;Quando eu descobri no cinema uma forma de contar histórias, eu senti como se encontrasse algo que era parte da minha natureza;, contou, à revista Interview. E contar histórias, no caso, é vocação. Que, ele reconhece, transcende o cinema.
Desde o fim dos anos 1970, o cineasta cria um labirinto de narrativas que parece arquitetado para despertar no público o mesmo entusiasmo que o diretor sentia quando contava fatos mirabolantes às irmãs e aos irmãos. Um dos atrativos sugeridos pela mostra do CCBB é a imersão num estilo tomado por personagens e situações que espelham a ligação sentimental, intensa, entre o diretor e a arte. A cumplicidade com tipos ;outsiders;, que enfrentam conflitos entre a individualidade e as convenções sociais, indica o traço humanista de uma filmografia sem pudores.
Nos momentos mais autobiográficos ; como Má educação, de 2004, e Abraços partidos, de 2009 ;, essa confusão se mostra de forma explícita, sem filtros. Não seria exagero, no entanto, tomar toda a trajetória do diretor como o retrato de um menino interiorano que, sufocado pela ditadura de Francisco Franco, filmou uma geração que ansiava por liberdade. Nos primeiros filmes, como Maus hábitos (1984), rompeu tabus e regras de etiqueta a machadadas de sarcasmo e pop art. Fez do underground de Madri um abrigo anticaretice. Franco, que governava o país desde 1936, morreu em 1975: a voz de uma certa juventude teria que se impor, nem que no tranco
Três fases
O grito se fez ouvir em filmes imperfeitos, porém furiosos. Mais tarde, em comédias populares como Mulheres à beira de um ataque de nervos (1988), os ;bombons envenenados;, afinaram o gosto pela rebeldia e pela cultura gay com uma sensibilidade cada vez mais afetuosa. Amenizou a anarquia, mas permaneceu inquieto. ;Podemos identificar três fases da carreira dele. No início, era cinema em estado bruto. Depois, a partir de Mulheres à beira de um ataque de nervos, fez comédias acessíveis. E, desde A flor do meu segredo, o que notamos é um cineasta com domínio da linguagem;, observa o curador Breno Lira Gomes,.
Além dos filmes do diretor, a mostra recheia a programação com quatro fitas produzidas pelo diretor (entre elas, A menina santa, de Lucrécia Martel) e 14 obras ;preferidas; (Janela indiscreta, de Hitchcock, é uma delas). No decorrer do evento, serão realizados dois debates: Pedro Almodóvar, o diretor (3 de agosto), com mediação do repórter do Correio Ricardo Daehn, e A estética kitsch e a diversidade sexual no cinema de Pedro Almodóvar (11 de agosto). Todos os longas assinados pelo diretor serão exibidos em 35mm ; menos Mulheres à beira de um ataque de nervos, em DVD. De Pepi, Luci, Bom (1980) a Abraços partidos, o que brilha na tela é a formação de um grande cineasta: felizmente, uma saga ainda em movimento.
EL DESEO ; O APAIXONANTE CINEMA DE PEDRO ALMODÓVAR
Até 14 de agosto, no cinema do Centro Cultural Banco do Brasil. Hoje, Pepi, Luci, Bom e outras garotas de montão, às 16h; Tudo sobre o desejo: o apaixonante cinema de Pedro Almodóvar, às 17h;Labirinto de paixões, às 18h50; e Maus hábitos, às 20h50. Acesso livre. Não recomendado para menores de 18 anos.
Leia um trecho do livro Conversas com Almodóvar, de Frederic Strauss
"Comecei a ir ao cinema mais ou menos aos 10 anos, porque na aldeia onde até então eu vivia era raro podermos ver filmes. Em Cáceres, nos anos 1960, durante meus anos de liceu, o que víamos era a comédia americana da época: filmes de Frank Tashlin ou de Blake Edwards, alguns de Billy Wilder, ou ainda Um caminho para dois, de Stanley Donen, de que eu gostava muito. Em Cáceres vi também os primeiros filmes da nouvelle vague francesa, Os incompreendidos, Acossado, os grandes filmes neo-realistas italianos, os primeiros Pasolini, filmes de Visconti e de Antonioni, cuja memória guardei para sempre porque me emocionaram muito. Nenhum desses filmes me falava da minha vida, mas curiosamente sentia-me muito próximo do mundo que me revelavam"