Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Livro conta a história e traz um álbum inédito do músico Paulo Moura

Há pouco mais de um ano, Paulo Moura deu o último sopro de vida. Deixou a música instrumental órfã de um de seus maiores intérpretes: um clarinetista, saxofonista e compositor que, além de passear com classe por vários estilos (choro, jazz, samba e música erudita), não via separação entre voz e acorde. Em vez de sussurrar refrões e versos em português, murmurava uma melodia que parece vir da alma brasileira. ;Não importava se ele acompanhou, algum dia, Elis Regina ou Milton Nascimento. O que importava é que ele podia estar presente ao lado dessas e outras estrelas e não atrás, não ser músico que fica escondido e que vira uma orelha ou dedo na tela da tevê. Ele desvendou as moléculas de uma célula. Mostrou como era a constituição estrutural da música brasileira ao fazer com que ela fosse aceita sem palavras;, descreve Halina Grynberg, que foi casada com ele por 26 anos e atuava como produtora musical. Na compilação de entrevistas Paulo Moura, um solo brasileiro (Casa da Palavra), em edição bilíngue e com um disco produzido por André Sachs, Fruto maduro, ela apresenta conversas editadas a dois meses da morte do musicista, aos 77 anos.

No último dos diálogos da coletânea, que monta uma biografia completa narrada em primeira pessoa, Moura lamenta o espaço estreito reservado à ;música para ser ouvida;, no Rio de Janeiro. ;Era ali, no Bottle;s Bar. E eu queria o mundo;;, confessa. Queria e conseguiu. Paulista de São José do Rio Preto, mas criado no Rio desde adolescente, ele entrou na música incentivado pelo pai, carpinteiro no dia a dia e clarinetista nas horas de folga. Moura estudou piano, porém, logo se desviou para o sopro.

;Historicamente, na música erudita, a clarineta é anterior enquanto instrumento presente nas grandes composições. O saxofone não era instrumento solista nas orquestras eruditas;, lembra Halina. Ele era assim: frequentava bailinhos e gafieiras e tinha um conhecimento que o permitiria viajar o mundo, sempre com um sorriso generoso, e escrever um repertório com mais de mil folhas, segundo a autora.

Poesia não verbal
Moura foi atrás de todos os sotaques possíveis: o samba dilatado de pé, samba do Rio, ritmos africanos e a herança europeia, sobretudo a espanhola. ;A principal virtude foi dar existência à música instrumental como um bem popular. É como se ele fizesse parte, com a sua música, da natureza, dos sons das folhas, do vento, dos pássaros, do mar, do rio que corre, da pedra que cai. Ele captou o ambiente sonoro da identidade do Brasil;, explica a escritora.

É um chorão e um dos ícones do samba-jazz, gênero relacionado a outros grandes, como Edison Machado, Moacir Santos e Sérgio Mendes. Escreveu arranjos para todos os estilos, uma produção que, avisa Halina, será digitalizada por meio do Instituto Paulo Moura. ;Se ele pegava uma peça, ia vertendo, ;transcriando;, no sentido de Haroldo de Campos: podia ser para um duo de piano, quatro clarinetas ou uma big band;, adianta, sobre um catálogo que não terá sede física, apenas virtual.

Último registro
O disco Fruto maduro, que levou cinco anos até a finalização, exibe um instrumentista em constante metamorfose: ele visita sua própria obra e ainda assim evolui, abrindo os braços para uma produção mais eletrônica, regida por André Sachs. Moura ia à casa de Sachs uma vez por semana. No estúdio ; ou ;cafofo; ; do amigo, eles gravavam com paciência, de vez em quando esbravejavam um com o outro, e se davam o direito de jogar fora e tentar de novo. Com talento e suor, Paulo Moura soprava sons sem idioma, tão brasileiros quanto universais.

Leia trechos do livro Paulo Moura, um solo brasileiro:

- Quando a música surgiu em sua vida?

Comecei a ouvir música em casa. Meu pai tocava, meus irmãos tocavam, e achei que seria a mesma coisa comigo, porque aos 9 anos eu já tocava. Bem que eu quis começar antes, mas papai me segurou um pouquinho e foi só a partir dessa idade que comecei a estudar com ele.

Escolha, não foi. Mas foi um caminho, talvez o único que eu, no fundo, acabaria escolhendo. Na verdade, eu até tive vontade de trabalhar com mecânica, eu achava interessante. O Aristides, meu cunhado, casado com minha irmã mais velha, Filhinha (Dalila), era mecânico e vivia falando que ganhava mutia gorjeta, e eu pensava que com essa história de gorjetas eu me daria bem. Mas meu pai achou que eu não deveria trabalhar com coisas que sujassem as mãos. Então cismei em escolher uma profissão para mim que fosse ideal para ele.


- Uma profissão para você que fosse ideal para seu pai?

Sim, porque ele achava isso., era diferente de mim... Talvez pensasse em algo que fosse melhor para mim. Essa ideia me escapou, eu nunca tinha pensado assim; não uma profissão que fosse ideal para ele, mas que fosse mais digna. Porque ele, na verdade, não influiu na minha escolha: "vai ser isso", "vai ser aquilo", acho... (risos).

O que ele queria era realizar um sonho, que nem era tão grande: queria ensinar música aos filhos; pensava que os filhos tinham jeito para música, e todos nós, de fato, tínhamos mesmo.

Por isso, ele orientou os filhos até a idade em que considerava necessária sua interferência. Mas, depois de certo ponto, nem havia condição para isso. Tornou-se tradição da família, que os filhos, a partir dos 18 anos, fossem para os grandes centros: São Paulo ou Rio de Janeiro.