Quando o ator escocês John Fraser leu o roteiro de Repulsa ao sexo, por volta de 1964, telefonou imediatamente para Roman Polanski. Estava enfurecido.
; Você já foi ao psicanalista? ; perguntou Fraser.
; Por quê?
; Porque este filme é repugnante.
; Mas, John ; disse o cineasta ; era para ser engraçado.
A cena, narrada na biografia Polanski: uma vida, pode ser lida como uma anedota. Ou como um flash esclarecedor sobre um homem de cinema cuja vida parece mais surreal (ou, no mínimo, mais surpreendente) que os seus próprios filmes. De qualquer uma das formas, o diálogo poderia ter entrado nos roteiros de produções como O bebê de Rosemary (1968) e Chinatown (1974). O talento para gargalhar diante da sordidez do cotidiano marca a trajetória de uma das personalidades mais controversas da tela.
Para os inimigos, ele é o ;gnomo devasso e maligno; (e são palavras do cineasta). Para os amigos, um artista perfeccionista e imaginativo, que não repete truques nem afaga o espectador. Acima de tudo, um homem difícil de ser decifrado ; que, avesso a entrevistas e a gestos polidos, deixou-se camuflar numa nuvem de mistério. ;Até onde minha memória consegue alcançar, a linha entre fantasia e realidade sempre foi perdidamente imprecisa;, escreveu, em 1983.
A biografia que chega às prateleiras do Brasil, pela Nova Fronteira e com prefácio de José Wilker, abre com uma declaração de intenções. ;Eu sou um homem do espetáculo. Estou sempre atuando;, disse Polanski. Assinado por Christopher Sandford, um especialista em retratos de celebridades (além de roteirista e compositor, é autor de livros sobre roqueiros como Mick Jagger, Kurt Cobain e Paul
McCartney), o livro tenta desanuviar a encenação criada ou estimulada pelo diretor.
Na pesquisa sobre a carreira do francês, Sandford admite que são comuns as definições ;extremamente inteligente; e ;uma aberração;. ;Entre os paradoxos, o homem parece ter escapulido;, escreve. Uma estratégia sensata para se aproximar da imagem de Polanski, ele reconhece, é não simplificá-la. Não dá pé. A personalidade complexa do artista contamina uma filmografia igualmente múltipla, com títulos sobre cultos satânicos, thrillers psicológicos, adaptações de Shakespeare e Dickens, um melodrama de época, suspense hitchcockiano, um drama sobre o holocausto e uma fita de ;pornô soft;.
No cinema, Polanski se tornaria conhecido por temas ardidos: tensão sexual, voyeurismo, a violência iminente. As neuroses
eram filmadas com tanta propriedade que a indústria do cinema ventilou a suspeita de que a obra do diretor seria um retrato do homem. Uma hipótese que Polanski descartou (e ainda descarta) com veemência. ;Não pertenço àquele negócio. Faço longas-metragens de ficção. Nunca me interessei em fazer um filme autobiográfico. Qual seria o sentido disso?;, provocou.
Enigmas
;Parecem existir inumeráveis mistérios acerca de Polanski, sábio, criminoso e relutante objeto de estudo de incontáveis teses de Ph.D. ; o principal é sua aparente transformação em diversas pessoas;, observa Sandford. A presença recorrente do diretor no noticiário policial colaborou para a criação de um enfant térrible, odiado pelos conservadores dos Estados Unidos e do Reino Unido. Os dois episódios mais chocantes da vida de Polanski ocupam calhamaços da biografia: o assassinato da esposa, atriz Sharon Tate, grávida de oito meses, e a acusação de estupro de uma menina de 13 anos, em 1977.
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Filho de pai polonês e mãe russa, o cineasta sobreviveu ao holocausto, porém viu o pai ser preso e perdeu a mãe em Auschwitz. Foi em 1969, no entanto, que se deparou com aquilo que chama de ;a tragédia central; de sua vida: a mulher, Tate, e outras três pessoas foram assassinadas pela seita da família Charles Manson. Nos anos seguintes, enquanto lançava alguns dos filmes mais comentados de uma fase inspirada de Hollywood ; quando os grandes estúdios permitiram a invasão de uma geração jovem de cineastas, como Francis Ford Coppola e Martin Scorsese ;, o ;baixinho orelhudo de língua presa; foi associado ao estereótipo do europeu excêntrico, praticante de sexo grupal e magia negra.
Nove anos depois, diante de uma possível sentença de 50 anos pela acusação de ;relações sexuais ilegais;, Polanski enfrentou um novo baque pessoal: fugiu dos Estados Unidos e se mudou para a França. Em 2009, foi detido no aeroporto de Zurique e, após um período de prisão domiciliar, teve pedido de extradição negado pelo governo suíço. Conquistou a liberdade em 2001, durante o lançamento do filme O escritor fantasma. A um repórter francês, desabafou: ;Tenho sido um fugitivo por toda a minha vida;.
Artimanhas
O homem que transparece no livro de Sandford converte adversidades em escárnio. É um herói malandro, arteiro. No gueto de Cracóvia, ele e um amigo conseguiram visitar um cinema reservado às forças armadas, fingindo ser crianças alemãs. ;Era a primeira de muitas artimanhas, exercícios de sobrevivência;, escreve o biógrafo.
Em filmes como O pianista (2002), que rendeu a ele o Oscar de direção, converteu traumas em narrativas diretas, comunicativas.
;Todo esse negócio de ;cinema de arte; não me interessa. Apenas gosto de brincar com a câmera, a iluminação, os atores. Para mim, filmar é o mesmo que um trem elétrico representa para uma criança;, disse, à revista alemã Die woche.
Aos 77 anos, Rajmund Roman Thierry Polanski está concluindo o 19; longa da carreira. Selecionado no Festival de Veneza, Carnage tem elenco formado por Kate Winslet, Christoph Waltz e Jodie Foster. O gênero é novidade para o cineasta: o drama doméstico.
Quem conhece a trajetória de Polanski, contudo, sabe que as surpresas fazem parte do jogo de cena. ;O cinema é frequentemente muito pretensioso. Diretores retalham o filme, sacolejam a câmera para cá e para lá, manipulam o som. Mas com que propósito? Todo mundo sabe que coisas assim são possíveis. Mas ser simples ; aí é que reside o talento real;, afirmou o cineasta.
Leia trechos do livro Polanski: uma vida, de Christopher Sandford:
"Por mais tentador que seja para um biógrafo de Polanski ;explicar; sua carreira do ponto de vista de sua condição de eterno estranho no ninho, para mim o caso é justamente o oposto. Um amigo íntimo de Londres, da época se seu casamento com Sharon Tate, refletindo sobre o planejamento ;um tanto improvisado; do evento, lembra-se de ;Roman dizer que, apesar de sua familiaridade tanto com os rituais judaicos quanto com os católicos, ele próprio era agnóstico. O que compartilhava com as pessoas realmente religiosas era a sensação de exílio, e isso provinha não de sua ascendência estrangeira, mas de sua condição de ser humano. A estranheza essencial da vida neste planeta, particularmente em lugares como a Hollywood dos anos 1960, deva a todos esse sentimento, exceto aos idiotas".
"Polanski sempre teve um lado reflexivo, especialmente ao discursar sobre sua versão da história da arte - citando todo mundo, de Demócrito aos Rolling Stones - ao mesmo tempo que saía pela tangente falando sobre política e terrorismo e apontava suas tiradas contra a indústria cinematográfica consagrada, a qual chamava de ;reino da mediocridade;. Tendo crescido um garoto esperto, ainda que terrivelmente perseguido, parece ter nutrido seu ego, assim como o eterno fatalismo. ;Os destinos dos meus personagens são resultado de uma coincidência aparentemente insignificante;, disse certa vez, o que poderia vir a ser aplicado a muitos aspectos de sua própria carreira. Um tema ainda mais sombrio, raramente distante dos roteiros de Polanski, é o da traição e, por extensão, da morte e a inevitável culpa por ter sobrevivido. Quando questionado sobre a violência em seus filmes, quase sempre destaca que nada mais faz além de mostrar o mundo ao seu redor, e ele certamente foi um dos poucos diretores a ter contato direto com uma porção de monstros homicidas do século 20."