Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Crimes sexuais e sentimento de culpa são temas de recentes romances


Não chega a ser novidade que a literatura pegue emprestadas histórias das páginas policiais dos jornais diários. Edgar Allan Poe (1809-1849) e Raymond Chandler (1888-1959) imitavam a vida real em suas crônicas de mistério. Mas hoje em dia, como dar a volta, pela arte, num jornalismo cada vez mais histriônico, em que casos como os das meninas Madeleine e Isabela são martelados à exaustão? Como vencer, na ficção, a sordidez de dramas reais como o da garota Natascha Kampusch, sequestrada e estuprada regularmente durante oito anos num porão de um subúrbio familiar de Viena?

Perceba que Natascha fugiu do cativeiro em 2006 e, atenta ao apelo popular de seu caso, despertado e mantido pela mídia sensacionalista, explorou a própria tragédia em um livro que se tornou best-seller internacional ; cá no Brasil, ganhou o título de 3.096 dias, em oferecimento da editora Verus.

A mesma editora agora leva à praça Quarto (2010), o premiado romance da irlandesa Emma Donoghue. Um livro que, se não é diretamente inspirado pelo caso de Natascha, certamente remete a ele e a casos similares mundo afora. Quarto foi muito bem recebido, ganhou diversos prêmios literários e foi finalista do celebrado Man Booker Prize, a mais badalada láurea da literatura em língua inglesa. Tornou-se ainda um best-seller pelos próprios méritos.

Um par de anos antes de Emma, o escocês Irvine Welsh também explorara as manchetes em um trabalho de ficção que corteja o realismo do noticiário policial. Notório desde os anos 1990 por esmiuçar em suas histórias o submundo drogadito de Edimburgo, sua cidade natal, Welsh tomou um avião e fez da ensolarada Flórida, nos Estados Unidos, o cenário do thriller cinzento Crime (2008), em que o leitor de repente se vê às voltas com uma rede de pedofilia entranhada até na polícia. Crime acaba de receber versão brasileira pela editora Rocco.

Talvez seja interessante aproveitar a coincidência dos lançamentos nacionais de Irvine Welsh e Emma Donoghue para, justapondo os livros, tentar entender essas maneiras com que dois reconhecidos escritores contemporâneos tentaram recriar o mundo aqui fora no que ele tem de mais vil. Eles abandonaram a torre de marfim.

Culpa e ação
Irvine Welsh, o bad boy da literatura britânica, surgiu aos 35 anos com Trainspotting (1993). Um livro que ultrapassou as fronteiras literárias e se tornou um fenômeno daquela década por conta do filme de Danny Boyle (de 1996) e de toda uma cena a ele relacionada ; da música eletrônica a um novo paradigma de cinema pop.

Welsh embarcou na onda e tentou prolongar a mágica com as estripulias químicas dos contos de Ecstasy: three tales of chemical romance (1996). E ali o autor de The acid house (1994) já estava a se repetir. Passada a ressaca, Welsh agora tenta encontrar um novo tom para suas narrativas. Tem sido assim, pelo menos, desde As revelações íntimas dos grandes chefes (2008) e seu humor negro.

Daí Crime surpreender o leitor por caber tão comodamente na literatura de gênero. No caso, o gênero policial. Com todos os clichês disponíveis no mercado, a começar por um anti-herói em crise que se afasta do terreno conhecido e acaba por se ver obrigado a negligenciar urgentes questões pessoais para atender ao chamado do dever e da honra.

No caso específico deste Crime, estamos a tratar de Ray Lennox, um policial escocês que tenta se livrar das drogas e do álcool. Não muito diferente do tira Bruce Robertson, protagonista de Filth (2002). Lennox acaba de falhar miseravelmente num caso de pedofilia em Edimburgo e foi premiado com uma licença por estresse. Lennox viaja com a noiva para Miami, para tentar salvar o relacionamento em crise e pegar um bronze. Mas ele acaba saindo da linha numa noite de bebedeira ; e dela acorda para três ou quatro dias miseráveis. Quando Lennox se vê diante de outro caso de pedofilia, em pleno andamento. A vítima é uma garotinha latina de 12 anos de idade. Desta vez, Lennox vai fazer a coisa certa. A noiva que o espere.

Segredo vazio

Welsh tem um mistério a guardar para nós lá no fundo de Ray Lennox. Mas como ele está a atuar em um romance de gênero, Welsh bem poderia ter se dado conta de que esse misterinho talvez nem seja tão misterioso assim, poderia ter se dado conta de que o prezado leitor já pode ter topado com uma ou outra história de outro autor mais versado no gênero (um Dennis Lehane, por exemplo) e daí o tal mistério se esvazie antes da hora.

Lennox aspira a uma vida caretinha, mas se vê obrigado a agir e enfrentar os próprios fantasmas. Irvine Welsh, por sua vez, parece aspirar a uma literatura mais fácil. Como se o tema pedofilia, por si só, esgotasse toda sua conhecida necessidade de transgressão. O texto e a narrativa são diretos e retos como raramente ; nunca? ; se vira na obra do escocês. Trainspotting, a citar o caso mais radical, soava como uma transcrição por extenso da fala malandra das ruas de Edimburgo. A forma e o conteúdo se ajustando de uma maneira selvagem e bela. Viva. Crime também adequa a sua forma a seu conteúdo. Mas agora no sentido ruim dessa adequação. A história cheia de clichês é enquadrada em capítulos curtos, a maneira de Welsh emular o espírito page turner das narrativas policiais ; como num folhetim ; terminando cada episódio com um gancho de ação para o próximo. E, até para alimentar o suspense e para fazer Lennox parar de pé, a narrativa em tempo presente é interrompida aqui e acolá para curtos flashbacks daquele caso na Escócia que deflagrara o sentimento de fracasso & culpa no peito de nosso herói. Enfim.

Na batalha surda entre ficção e realidade, Welsh inesperadamente perde sua aposta. Inesperadamente porque, afinal, ele se revelara autor capaz de fazer brotar o humano da paisagem mais degradada. A flor do pântano neste Crime, a flor dos charcos da Flórida, é uma orquídea de plástico. Sem perfume. Crime chega a um desfecho tão forçado que só mesmo a manipulação do escritor poderia justificar. E quando se pretende trabalhar na chavinha realista de uma história policial, a percepção dessa manipulação é a derrota do escritor. Deixa no ar um quê de impostura.

Culpa e omissão
A experiência de Emma Donoghue parece ser mais bem-sucedida que a de Welsh. Quarto é o sétimo romance dessa escritora dublinense de 41 anos, radicada no Canadá há mais de uma década, e por lá prestigiada desde seu segundo livro, Hood (1995). Quarto é seu primeiro livro publicado no Brasil.

O tal ;quarto; do título é o lugar onde uma jovem está presa e incomunicável há sete anos, desde que foi raptada por um senhor mais velho, um desconhecido de ar respeitável. Ela é mantida ali trancada e só sabe se é dia ou noite de acordo com a luz que entra pela claraboia no teto. O quarto não tem janelas ; e obviamente sua porta não abre por dentro. O quarto, na verdade, é a cela de uma prisão particular.

A garota está lá há tanto tempo que parece já ter desistido de fugir, de lutar contra seu agressor. Mesmo sabendo que todas as noites ele virá para estuprá-la. A garota já nem nome tem. Quando a conhecemos, ela é chamada apenas por ;mãe;. Quem está a chamá-la assim é Jack, um menininho de cinco anos nascido de uma dessas visitas daquele que eles tratam por Velho Nick. E é por causa de Jack, que só conhece o mundo pelo que chega à tevê do quarto, que só conhece o mundo pelas memórias da mãe, que ela vai tentar ; uma última vez ; vencer o Velho Nick.

A mãe não consegue deixar de se sentir culpada ; ela, que é uma vítima ; por permitir que Jack também viva no quarto. Pode a vítima de uma barbaridade ser também a causadora de outra barbaridade?

Emma Donoghue aposta pesado ao estabelecer Jack como narrador de seu livro. O único narrador. Não há outro ponto de vista aqui. O livro inteiro é narrado em primeira pessoa por um guri de cinco anos de idade.

Emma, ao bancar essa aposta, se coloca problema e tanto. Porque não só o leitor também tem que entrar nesse pacto, e daí absorver as implicações linguísticas dele decorrentes (palavras tortas, erros de concordância e de significação etc.), como também tudo isso tem que ser crível numa história que aspira a um realismo cru e cruel. E mais ainda: ao colocar Jack como único narrador, Emma afasta o leitor do centro das decisões da história. Afinal, Jack, do alto de seus cinco anos de idade, é menos o autor das próprias ações do que o sujeito das ações dos outros. Portanto, como o narrador se torna um tanto passivo, aumenta ainda mais a intranquilidade do leitor do lado de cá. E isso só acontece porque Emma consegue manobrar muito bem as armadilhas de uma história de mais de 300 páginas nesse esquema.

A opção de Emma por Jack como narrador obviamente não é original num drama familiar ; Paul Theroux, num exemplo, fizera parecido com resultado similar no notável A costa do mosquito, de 1981. Essa opção mostra uma autora disposta a arriscar (abraço pro Irvine Welsh) e faz de Quarto um livro mais interessante, uma experiência literária mais rica do que o tema poderia sugerir.

Emma Donoghue transcende as quatro paredes de seu quartinho infernal não apenas por conta de sua habilidade no manuseio das palavras. Pelas linhas tortas da desventura de Jack e sua mãe, Emma termina por levantar uma ou duas questões relevantes sobre a mídia ; que invade lares nas imagens da tevê, que invade vidas com suas reportagens sensacionalistas ; e principalmente sobre os laços maternais. Os laços maternais e filiais nessa espécie miserável de família em que o terceiro elemento é Velho Nick, o estuprador serial.

Mais do que o relato ficcional de um crime reiterado, Quarto talvez seja uma espécie de parábola bela e sombria sobre o amor materno. Como esse amor pode ser tudo o que resta ; o primeiro amor, e o último também.