Nem futebol, nem carnaval. A verdadeira paixão do Peru é a comida. Todos no país, de uma forma ou de outra, estão envolvidos com a gastronomia ; um conhecimento milenar, que remonta a vários séculos antes do império inca. O que mais concorre para a congênita obsessão desse povo pelo sabor é a biodiversidade surgida da enorme variedade de microclimas, espécies e produtos existentes na terra andina. Só para citar um exemplo: no Peru, crescem 180 tipos de batata, fora as dezenas de espécies de milho de todas as cores e de frutas.
O que fazer com tantas variedades senão incorporá-las ao consumo no dia a dia, como fizeram os índios que primeiro habitaram o território? Pois foi justamente essa herança culinária praticada até hoje que sensibilizou um jovem limenho a transformá-la na principal arma capaz de emplacar o Peru no mapa do mundo com grande destaque.
Formado na escola francesa Le Cordon Bleu, Gastón Acurio, 44 anos, filho de um ex-senador, largou os estudos de direito em Madri para se tornar cozinheiro. Em 1994, abriu com a mulher o primeiro restaurante no Peru, o Astrid y Gastón, que tem filiais em mais sete países: Argentina, Chile, Colômbia, Equador, Espanha, México e Venezuela. Acurio se tornou muito conhecido por seus projetos junto a comunidades carentes e, em 2008, criou o evento Mistura, quando era presidente da Associação Peruana de Gastronomia (Apega).
Produtores, empresários, fornecedores, chefs, estudantes de gastronomia e amantes da boa mesa participaram da 4; Feira Gastronômica Internacional, denominada Mistura, que se encerrou no último domingo, no Parque de La Exposición, em Lima. Pelos portões da feira, aberta dia 9 pelo presidente Ollanta Humala, que assumiu o governo há menos de dois meses, passaram 400 mil pessoas. Além dos pratos de grandes restaurantes peruanos e das comidinhas de oito cozinhas regionais preparadas pelos campesinos, os visitantes tiveram este ano uma atração a mais: a elite mundial dos chefs.
Oito dos nove mais influentes chefs do mundo realizaram lá a segunda reunião do G9, criado ano passado em San Sebastián (Espanha) como conselho do Basque Culinary Center (BCG), que dará início à primeira faculdade espanhola de gastronomia. Fazem parte do grupo o brasileiro Alex Atala, o peruano Gastón Acurio, o americano Dan Barber, o japonês Yukio Hattori (que convidou os colegas para a próxima reunião no Japão, em setembro de 2012), o italiano Massimo Bottura, o francês Michel Bras, o dinamarquês René Redzepi (seu restaurante Noma foi considerado pelo segundo ano o melhor do mundo) e o espanhol Ferran Adrià, presidente do conselho. O inglês Heston Blumenthal não esteve presente.
E o que renomados chefs internacionais foram fazer no Peru? Pensar o futuro da gastronomia, garantiram ao final da reunião, que aprovou uma carta aberta aos cozinheiros de amanhã. Ao som de tambores e flautas andinas, os chefs foram aplaudidíssimos pelos estudantes de gastronomia que lotaram o auditório para assistir às palestras e, no fim, percorreram a feira assediados pelo público em meio à fumaça causada pelas grelhas das parrillas. Gastón Acurio anunciou o seu novo Astrid y Gastón, ambicioso projeto erguido numa antiga fazenda nos arredores de Lima, que reunirá, além do restaurante propriamente dito, bar de pisco, mercado do produtor, jardim da biodiversidade, centro cultural e gastrobar. ;Um espaço em que nada fique excluído;, definiu o chef-símbolo do Peru.
Pimentas orgânicas
Num país em que ;todo dia se descobre um novo ingrediente;, como informou Acurio, não é tarefa fácil eleger o alimento ícone do evento. O Mistura, que em 2010 consagrou as batatas nativas dos Andes, este ano optou pelas frutas. Elas são encontradas em três regiões: na costa, na serra andina e na selva amazônica, sendo que o melhor lugar para vê-las frescas é no Mercado Surquillo, onde nove entre 10 chefs de Lima se abastecem.
Além das frutas ; algumas raras e únicas ;, são as pimentas outro patrimônio culinário do Peru. Rocoto, a mais picante, dá nome ao principal prêmio com o qual o Mistura distingue o trabalho de produtores e comerciantes que difundem parte da riqueza natural. Este ano, os sete ganhadores do Rocoto de Ouro já têm ou estão em busca do certificado para produto orgânico ; uma mania nacional.
Indispensáveis mesmo na mesa do peruano, além da ardida rocoto, são as outras pimentas, chamadas de ajíes, a ponto de Acurio afirmar na apresentação do livro Ajíes peruanos ; Sazón para el mundo que, ;sem ají, não existiria comida peruana;. Elas podem ser de duas cores: vermelha ou amarela. Aliás, o que não falta na cozinha peruana é cor. Justamente o ají amarelo dá o tom a uma receita originária da cidade de Huancayo, em molho picante que cobre batatas cozidas na célebre papa a la huancaína, uma unanimidade nacional.
Outra é o ceviche, uma preparação que há 40 anos não se comia em Lima, admitiu a prefeita Susana Villarán, para quem a capital, depois de se submeter a ;uma cultura afrancesada;, descobriu suas origens. Ela defendeu novo espaço para o Mistura, ;que não seja um monumento de cimento;, mas um lugar amplo e confortável capaz de abrigar a mais alta pretensão dos limenhos: consolidar Lima como a capital gastronômica da América Latina.
Sucesso no mundo e em Brasília
Inspirado nas milhares de cevicherias que existem no Peru, Gastón Acurio fundou em 2004 a La Mar, com o mesmo nome da avenida que corta Lima até o Pacífico. Instalada em ponto estratégico ; uma esquina de cinco ruas ; a casa tem estilo praiano, decorada com palha e madeira. Abre todos os dias às 12h30, já com fila, e funciona até as 17h30, sem reservas.
Ano passado, 100 mil turistas passaram por lá. Deu tão certo que seu criador transformou a La Mar Cebicheria em franquia e, com ela, chegou a São Francisco, Cidade do México, Santiago, São Paulo, São José da Costa Rica e Panamá. Este mês, a grife desembarca em Nova York, precisamente no número 11 da Madison Avenue (25th Street).
Brasília não ficou fora da onda que seduziu o mundo gourmet com o frescor do limão e a picância do ají. Juntos, eles são capazes de cozinhar, sem fogo, nacos de salmão cru e de outros peixes de carne branca num molho de muita cebola. O primeiro a apresentar a iguaria na capital foi o peruano David Lechtig, durante festival gastronômico realizado no El Paso Texas, do Terraço, em fevereiro de 2008. Desde então, ceviche entrou definitivamente no cardápio e é servido com outros pratos peruanos no El Paso Latino, da 404 Sul, e em breve no El Paso, que abrirá as portas na 110 Norte, ;ainda em outubro;, promete Lechtig.
Há um ano, a cozinha peruana invadiu o Lago Sul instalando-se na QI 17, com o nome de Taypá. Conquistou vários prêmios, inclusive o de melhor peruano do Brasil, concedido pela embaixada do Peru. No comando, o chef Marco Espinoza, que acaba de voltar do Mistura com muitas ideias na cabeça. Novo cardápio será lançado em outubro. Vai ser um duelo de titãs.
Receita
Papa a la huancaína
Ingredientes
; 4 batatas médias cozidas e sem pele
; 4 azeitonas pretas
; 1 ovo cozido cortado em rodelas
; 1 pimenta amarela em tiras
; Folhas de alface
Para o molho
; 4 colheres (sopa) de azeite
; 245g de pimenta amarela, sem sementes
; 1 dente de alho
; 2 colheres (sopa) de cebola picada
; 200g de queijo frescal
; 150g de queijo fresco de cabra
; 8 colheres (sopa) de leite evaporado
; 4 biscoitos tipo cream cracker
; Suco de 1/2 limão
; Sal a gosto
Modo de fazer
Comece pelo molho. Numa caçarola, aqueça o azeite em fogo baixo e refogue a pimenta, o alho e a cebola durante 10 minutos. Deixe esfriar. Bata no liquidificador os queijos, o leite, o biscoito, o suco de limão e o sal. Retifique a pimenta. Corte as batatas em rodelas e sirva o molho a la huancaína por cima delas. Decore com as azeitonas, as rodelas de ovo, a pimenta e as folhas de alface.
; Rendimento: 4 porções
Glossário
Aprenda alguns termos peruanos:
; ajíes: pimentas em geral
; aguaymanto: fisalis, a cereja dos Andes
; camu camu: fruta da Amazônia
; cancha: milho seco
; causa: prato à base de batata, limão e alho
; chicha: infusão de abacaxi, milho vermelho, canela e cravo
; chifa: fusão das cozinhas chinesa e peruana
; chirimoya: ata ou fruta-do-conde
; chupes: sopas
; cocona: fruta da Amazônia
; cuy: preá
; huacatay: folha larga com pontas e cheiro que lembra mastruz, vai com frutos do mar
; huancaína: molho clássico à base de leite, queijo, biscoito e pimenta amarela
; lúcuma: fruta andina que rende delicioso sorvete
; yuca: mandioca