Diversão e Arte

Documentário As hiper mulheres abre a mostra competitiva nesta terça-feira

Ricardo Daehn
postado em 27/09/2011 07:59
Houve um momento em que, no meio dos elementos do ;outro planeta; chamado Alto Xingu, Leonardo Sette, um dos três diretores do documentário As hiper mulheres, caiu em torpor. ;As câmeras estavam lá, na praça central da aldeia onde acontecia um ritual faraônico, e me perguntei: ;Cadê o filme aqui? Vou montar uma aventura como o Corra Lola, corra e não uma fita que tenha algo de Robert Flaherthy;, diverte-se ele, numa referência ao cineasta que fundou uma escola atenta às relações entre os humanos e a natureza.

Superadas as dificuldades, Sette, ao lado do colega Takumã Kuikuro (cineasta saído do povo indígena Kuikuro), completou a obra, que dá a partida na competição do 44; Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, hoje, no Cine Brasília. Exibido no Festival de Gramado em agosto, As hiper mulheres é definido pelo terceiro diretor, o antropólogo Carlos Fausto, como ;um filme sobre música, memória e transmissão do conhecimento, que passa pelo afeto das relações pessoais;.

;Foi uma operação de tentar desconstruir e envolver ; começar naquilo pequeno, no cotidiano dos índios. Se entrássemos logo com uma monumental sequência de dança, as pessoas iam dizer: ;Ah, tá, filme de índio? Não, vira um mantra e eu tô fora;;, completa Sette.

Ciente da resistência do público a produções etnográficas ou que supracontextualizem o tema, o trio tem o olhar sintetizado pela visão de Fausto: ;Filmes que tenham índios como personagens ficam num nicho restrito: ninguém vê. Há duas correntes, em geral: uma atitude é encantada ; ;índio, natureza, harmonia? Que lindo, que bacana!’ ; e a outra associa o filme a atraso e a algo que não queira ver;. É por outra via ; ;fruto de um longo trabalho que conquistou a intimidade e a liberdade dos indígenas diante da câmera; ;, portanto, que As hiper mulheres chegou às telas.

Produto de uma política de Estado, pelo incentivo à valorização de patrimônio imaterial (o canto das mulheres Kuikuro), o longa derivou do projeto Vídeo nas aldeias, implantado em 1987 pelo diretor Vincent Carelli. O ritual capturado no Mato Grosso para o filme não ocorria desde 1982.

O contato com a contemporaneidade no documentário detido nos festejos ; que culminam em menos de um dia (mas que exigem mais de 30 dias de prelúdio) e reúnem mais de 1.400 pessoas ; transparece de modo surpreendente: há registros de divertidos jogos eróticos, na tribo, e a ;sacanagem; também alcança parte das legendas que enveredam para o cômico ; longe ;do pudor e da distância;, segundo Sette, empregada nas legendas de outros documentários.

Tradição convalescente.
A dramaturgia de As hiper mulheres se fortaleceu, num impasse oferecido pelo acaso: adoentada, Kanu é uma espécie de guardiã das músicas entoadas no maior ritual feminino Kuikuro, o Jamurikumalu (relacionado ao termo itão kuegü, mulher e hiper, pela ordem, designador de seres extraordinários), à beira do precipício, diante do escasso número de conhecedoras.

;As mulheres são a própria essência do filme. O ritual defendido tematiza uma espécie de utopia feminina de ocupar também a posição masculina, numa situação de conflito. Elas acabam demonstrando que uma sociedade não é possível sem homens e mulheres;, comenta o diretor Carlos Fausto. No cenário onde vivem ; em três aldeias estão 700 kuikuros ;, curiosamente, as mulheres ainda tendem a não empregar a língua portuguesa.

Saber que o acervo de cantos foi constituído por 130 horas de músicas gravadas (à capela e sem repetição) dá a medida da revitalização cultural em jogo em As hiper mulheres. Para tornar tudo ainda mais complexo, o aprendizado, na tradição oral, tem que seguir métrica preestabelecida e organizada em nós, feitos em palhas de buriti.

Em quase 100 horas de imagens, o entrosamento do trio de diretores com as mulheres da tribo foi privilegiado. ;É difícil eu chegar perto delas. Na aldeia, se fica perto da mulher, pensam que a gente tá namorando;, observa Takumã. Ele explica que o processo, grosso modo, foi o de ;ficar filmando, e deixar eles (os índios) agirem naturalmente, pra não ficar um documentário, assim, falso;.

;Nem tudo é verdade no filme, mas tudo é verdadeiro. A câmera estar, permanentemente, na mão deles permite resultados impossíveis para quem não seja do Xingu;, completa Carlos Fausto. Apesar de algumas encenações (sem diálogos impostos, mas esboçados pelos ;personagens de si mesmos;), o antropólogo conta que tudo foi muito autêntico. ;Não tivemos treinamento de atores, a maior parte do documentário segue a linha stricto sensu (em sentido restrito);, conta.

Arredias para tomarem parte nos meandros técnicos, as índias se animaram diante do resultado obtido. Termômetro para as reações, Takumã explica que ;no começo elas se acharam feias, mas foi brincadeira ; na verdade, elas estão gostando muito. Elas têm o pensamento da maioria, por terem participado do filme. Dizem: ;A gente não vai morrer mais, a gente vai sobreviver, o tempo todo;;.


44; FESTIVAL DE BRASÍLIA
Hoje, às 20h30, no Cine Brasília (106/107 Sul). Ingressos: R$ 6 e R$ 3 (meia). Exibição simultânea dos filmes no Teatro Sesc Newton Rossi, na QNN 27 de Ceilândia; no Teatro de Sobradinho (Q. 12); e no Cinemark Taguatinga Shopping (Q. 1). Ingressos: R$ 4 e R$ 2 (meia). Não recomendado para menores de 14 anos.

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