Um gene híbrido foi inserido no DNA de Trabalhar cansa, longa-metragem de ficção da segunda noite da mostra competitiva do 44; Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. O primeiro filme de longa duração assinado pela dupla paulistana Marco Dutra e Juliana Rojas comporta-se como um mutante. Trafega do realismo ao fantástico. Inclui trama de fundo social, sem apresentar qualquer sintoma de crise de identidade. ;É da natureza deste filme não se enquadrar numa categoria de gênero. É um drama social, com relações de família e uma história de mistério. Tudo isso articulado com o mesmo peso. É um filme que funciona se você não tem nenhuma expectativa sobre o que vai ver. Por isso, pode ser uma jornada prazerosa. Mas, claro, envolve risco;, comenta Juliana.
Na trama, o cotidiano de um casal paulistano de classe média é afetado por elementos reais e outros que habitam a imaginação (a da plateia inclusive). O marido, Otávio (Marat Descartes), é demitido após anos de trabalho numa mesma empresa. O sustento da casa passa a ser responsabilidade da esposa, Helena (Helena Albergaria), inserida no mercado de trabalho ao se transformar em dona de um mercadinho na região central de São Paulo. Inicia-se aí um processo de transformação dos personagens.
A culpa dessa curva, segundo os diretores, pode ser explicada na herança cinematográfica brasileira. ;Ao mesmo tempo em que admiramos Joaquim Pedro de Andrade e vários diretores do cinema novo, gostamos de José Mojica Marins e Walter Hugo Cury. Eles são diretores consolidados historicamente e entraram no universo do fantástico. Não são artistas que desapareceram na história. Existe uma tradição no cinema brasileiro que talvez não seja muito reconhecida. A gente gosta dessa linhagem;, afirma Dutra.
O hibridismo brasileiro de Trabalhar cansa desfilou pelo tapete vermelho da mostra Um Certo Olhar no último Festival de Cannes. O frenesi da Croisette não é exatamente novo para a dupla de diretores. Eles participaram em edições anteriores com os curtas-metragens O lençol branco e O ramo. ;Deu para perceber que o filme não é hermético. Ele estabelece comunicação com a plateia;, analisa a diretora sobre a sessão estrangeira.
Sessão de casa
Na casa dos 30 anos, Marco e Juliana fazem parte da geração de realizadores brasileiros formados pela chamada ;cinefilia de apartamento;. Além dos estudos formais nos bancos da ECA ; a Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP), onde começaram a produzir juntos o curta-metragem Notívago ;, eles acompanham pela internet cinematografias de outros países, antes inacessíveis no Brasil. E não negam a influência dessa miscelânea no que produzem. ;Não trabalhamos com referência direta. Apreciamos vários tipos de filme e somos contaminados por elementos muito diversos. Na verdade, o que sempre manda é a história. Temos um prazer até meio lúdico para contar histórias;, reflete Juliana.
Assim como os cariocas Marina Meliande e Felipe Bragança, que participaram do Festival de Brasília de 2010 com o filme de super-heróis A alegria (o segundo da trilogia Coração no fogo), os paulistanos gostam da narrativa do tailandês Apichatpong Weerasethakul consagrado com a Palma de Ouro em Cannes por Tio Boonmee que pode recordar vidas passadas. As duas duplas se arriscam num tipo de cinema incômodo e autoral, sem negar influências mainstream e filmes de Sessão da tarde dos anos 1980 e 1990.
TRAJETÓRIA DO FILME 3 Finalista do prêmio Sundance/NHK 3 Mostra Un Certain Regard, Festival de Cannes 2011 3 Melhor som no 4; Paulínia Festival de Cinema
Crítica // Trabalhar cansa ****
O mal dentro de nós
O casal de classe média de São Paulo protagonista de Trabalhar cansa poderia residir no apartamento do andar de baixo. Mesmo assim, os vizinhos não desconfiariam das mudanças operadas na vida de Helena e Otávio depois que ele foi demitido da empresa onde trabalhava havia 10 anos. Quando ela entra no mercado de trabalho, ao adquirir um mercadinho na zona central da cidade, a inversão de papéis é suavemente incômoda. Enquanto o mal-estar de ex-provedor atormenta Otávio, a doce Helena demonstra perturbação ante o mistério que se materializa numa infiltração inexplicável nas paredes do imóvel alugado.
O mal que invade lentamente a tubulação do prédio se aloja no interior dos personagens e revela abismos antes mantidos em segredo. Embrutece o casal de conduta insuspeita. Na condução da dupla de diretores, a sutileza do discurso é uma aliada para contar uma história sobre mistério. O título de gênero híbrido mistura elementos de um thriller sul-coreano com a bruteza daquele comercial de produto de limpeza estrelado por mulheres de gravata. Nunca perde as estribeiras durante a investigação da natureza humana refletida, aqui, em questões sociais bem brasileiras.
A dupla de diretores Juliana Rojas e Marco Dutra faz parte da nova geração de cineastas ligados umbilicalmente à política de filme de autor. Exemplos do vigor de realizadores como eles estão nos títulos da produtora cearense Alumbramento, na trilogia Coração no fogo, de Marina Meliande e Felipe Bragança, ou nas investigações formais dos documentários produzidos pela produtora mineira Teia.
No momento em que o insipiente circuito de cinema da cidade ignora os principais títulos realizados por diretores jovens, a única chance de conhecermos os lançamentos dessa geração é durante o Festival de Brasília. É uma pena que o público cinéfilo brasiliense tenha apenas os dias da mostra para conhecer as inquietações desta geração de cineastas promissores.
Três perguntas // Marat Descartes
O conflito entre classes sociais no momento em que o Brasil goza de
estabilidade econômica, e em que o número de pessoas a alcançar a classe média aumentou, ainda é válido?
Acho interessante o que tem de atemporal nas relações de poder. Existe uma faceta bestial dentro da gente. O que é genial no roteiro é a metáfora entre o sobrenatural e o comportamento humano. Quando recebi algumas cenas do Otávio, enxerguei essa trajetória. É muito concreto, possível e próximo. Acontece com a personagem da Helena também. Ela começa com um discurso de boazinha e acaba se transformando numa tirana.
Você acha que já se estabeleceu como ator de cinema? Qual foi a diferença mais marcante entre as duas artes (o teatro e o cinema)?
Faço teatro há 20 anos. Sempre tive vontade de fazer cinema, mas não me sentia à vontade na frente de uma câmera. Fui perdendo o medo e ganhando intimidade fazendo curtas-metragens. Eu me descobri. É uma loucura para o ator fazer as cenas fora da ordem cronológica, ter de buscar sentimentos entrecortados e mesmo assim construir uma trajetória. Eu amo estar em set. A política de ocupação das salas comerciais é cruel. No início foi uma experiência traumatizante. Me dei conta da crueldade desse sistema, sobretudo para os cineastas que dedicam anos da vida para um trabalho e o projeto é retirado em menos de um mês. Para que o processo cultural dê a volta completa é preciso uma política governamental séria e contínua.
Como você acha que a história do filme vai baterno público brasileiro?
É um filme estranho. Em Cannes, eu não consegui sentir nada em relação ao filme. Enxerguei um borrão, porque estava muito emocionado. Em Paulínia, a sessão foi muito boa. Essa pegada brechtiniana de estabelecer claramente as relações sociais e as relações de trabalho é facilmente entendida.
44; Festival de Brasília
Mostra competitiva hoje, às 20h30, no Cine Brasília (106/107 Sul; 3244-1660), com ingressos a R$ 6 e R$ 3 (meia). Exibição simultânea dos filmes no Teatro Sesc Newton Rossi (QNN 27 Lt. B, Ceilândia Norte; 3379-9526); no Teatro de Sobradinho (Q. 12, AE; 3901-4106); e no Cinemark Taguatinga Shopping (Q.1, Rua 210; 3451-6000), com ingressos a R$ 4 e R$ 2 (meia). Não recomendado para menores de 14 anos.