Diversão e Arte

As hiper mulheres é bem recebido na primeira noite da mostra competitiva

Ricardo Daehn
postado em 29/09/2011 09:06

Representantes do povo Kuikuro acompanharam a sessão de As hiper mulheres, no Cine Brasília: alegria com as imagens na tela

;Será que estão gostando?; A frase repetida com insistência por Kamankgagü, um proeminente morador de tribo indígena, dava a medida da expectativa de vários integrantes de uma aldeia Kuikuro, atentos à exibição, no Cine Brasília, do longa-metragem As hiper mulheres, primeiro título na programação dos concorrentes aos troféus Candango. ;O Kamankgagü é um tremendo entusiasta da própria cultura e é daqueles que têm maior conhecimento dos costumes;, explicou o antropólogo Carlos Fausto, um dos diretores da fita, ao lado de Leonardo Sette e de Takumã Kuikuro, filho legítimo do Alto Xingu e atual estudante de audiovisual da Escola de Cinema Darcy Ribeiro.

A indagação do empolgado personagem-chave da obra falada em aruák e carib veio em linguagem universal: uma salva de palmas e assobios demarcou o fim da projeção. ;Havia a expectativa fenomenal de passar o filme nesse cinema histórico. Com som maravilhoso e tela tão grande, ele ganhou nova dimensão. Achei a reação muito calorosa;, avaliou Carlos Fausto.

Também íntimo do grupo representado, já que há nove anos a relação entre a tribo de Mato Grosso e a equipe é estreitada, Leonardo Sette ficou satisfeito com o resultado: ;A projeção do filme aqui foi incrível. O público participou em todos os momentos, muito mais do que a plateia de Gramado. Talvez por ser um festival tão tradicional, na capital do país. Eu temia um certo distanciamento, até por se tratar de um filme de índio. Mas nós fizemos uma aposta na sensibilidade do público, e a resposta foi muito positiva;.

Tópico bastante enfatizado no debate ocorrido ontem em torno de As hiper mulheres foi o de que se trata de um produto do projeto Vídeo nas aldeias, criado para agregar a legítima visão dada por diretores e técnicos indígenas formados na prática. O longa encheu de orgulho justamente aquelas mais expostas na trama dedicada à reconstrução de um ritual feminino (o Jamurikumalu), sob o risco de desaparecer, dada a fragilidade da tradição oral de cantos seculares.

;Estou muito feliz de ver minha imagem no cinema. Me senti muito bem com o público. Foi importante para entender o cotidiano da gente. Não estamos mostrando a nossa luta, mas o dia a dia: a gente não encenou, contou o cotidiano de verdade;, explicou Kehesu Kuikuro, que não fala português e teve o auxílio de tradutor. Tia do diretor Takumã, Aulá Kuikuro completou: ;Meu aprendizado foi para representar as mulheres ; mães e irmãs ; do meu povo na tela. Foi muito bom ver o espectador aplaudindo. Agora quero cantar mais para, talvez, ser chefe das mulheres;.

Atentos às pontuações autônomas e desapegadas de fundamentos teóricos de filmagens que brotaram no set, naturalmente, pelas mãos de Takumã e de Mahajugi Kuikuro, Leonardo Sette e Carlos Fausto viram o público brasiliense se deleitar com imagens extraídas do cotidiano, por vezes inesperado, coloquial e bastante contemporâneo.

Inusitados, gestos e linguajar maliciosos para saliências e picardias quase juvenis vistas na tela e embutidas nas letras de cantos e ações de integrantes da etnia foram os momentos do filme que mais agradaram. Breves gags ligadas ao anacrônico uso do gravador, por uma índia, surtiram efeito.

Termômetro para a identificação da plateia, a ;potência cinematográfica; ressaltada por Sette na trama extrapolou o mero registro do almejado contato entre a etnia, o cosmos e os espíritos. Curiosamente, o reflorescimento da transmissão de cânticos entre a linhagem de parentes ; como a cantora Kanu; a mãe dela, Ajahi e a neta dessa, Amanhatsi ; travou contato com o filme de abertura do evento, Rock Brasília ; Era de ouro, pela carga afetiva que envolve a relação entre pais, filhos e elementos musicais.

Baú revirado

No debate em torno dos curtas apresentados na primeira sessão da mostra competitiva, o baiano Henrique Dantas, diretor de Ser tão cinzento, que cerca bastidores do filme Manhã cinzenta (proibido durante a ditadura), contou que chegou a pedir simbólica autorização para o realizador Olney São Paulo, diante de lápide dele, no cemitério São João Batista. Dantas lembrou a alcunha de ;mártir; (atribuída por Glauber Rocha) ao cineasta, que será enfocado em um longa-metragem dirigido por ele.

No palco do Cine Brasília, Dantas sublinhou que virou ;cineasta; no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e que, ;num momento em que temos uma presidente que já foi torturada é mais propício revisitar o passado, rever com mais coragem a nossa história;.

Premiado no Festival de Gramado, o gaúcho Rodrigo John deu um recado mais curto e leve, ao apresentar para a plateia Céu, inferno e outras partes do corpo: ;Espero despertar o lado cachorro que existe dentro de vocês;. No debate de A fábrica, outro curta da noite, Aly Muritiba, cineasta e agente penitenciário do Paraná, contou da intenção em desdobrar por outras obras o registro das relações entre agentes e presos. No palco do Cine Brasília, ele deixou claro: ;O filme não é feito para tocar, é feito para bater;. À frente de Bomtempo, o concorrente Alexandre Dubiela enfatizou a satisfação com a inclusão da categoria de animação no evento. ;Estou feliz de participar;, sintetizou.

CRÍTICA// Curtas

Céu, inferno e outras partes do corpo
(animação), de Rodrigo John. O tom agoniado da narrativa, que acompanha um homem à beira do colapso, sai-se como acompanhamento muito adequado para as canções de fossa que compõem a trilha sonora. (TF) ***

Bomtempo (animação), de Alexandre Dubiela. Com duração enxuta (1min30), a trama se escora em uma anedota singela, divertida. Mas são os traços cuidadosos da animação, com uma delicada seleção de cores, que valorizam o resultado. (TF) ***

Ser tão cinzento, de Henrique Dantas. Mais do que denunciar um caso de brutalidade durante a ditadura (que envolveu o cineasta Olney São Paulo), Dantas transforma a revolta em imagens ;sujas;, em decomposição. O impacto, no entanto, se dilui ao longo dos 25 minutos de projeção. (TF) ***

A fábrica,
de Aly Muritiba. Existe algo esquemático na trama, que guarda uma surpresa final para entortar as certezas do espectador. Felizmente, o bom elenco oxigena a estrutura do roteiro, tornando convincente o drama familiar. (TF)***

Eu fui...

;O longa me chamou muito a atenção. Ele começa colocando o sagrado (para o índio) e depois abriu o filme para uma linguagem mais aberta. A fotografia também é muito boa;
Juliano Basso, produtor cultural

;As danças dos índios são muito interessantes e essa dominação do universo feminino dentro da cultura deles também. O filme mostra o lado do poder delas;
Frederico Ramos, publicitário

;De modo geral, as animações foram ótimas e os outros dois curtas também foram muito ricos. O que mais me chamou a atenção foi o curta sobre a ditadura. Ele mostra que foi feito em cima de muita pesquisa. O longa sobre os índios parece uma narrativa dos próprios, mas de forma bem-humorada;
Leonardo Mustafa, empresário

;O longa é lindo. Mostra um lado indígena que a gente nem imagina: singelo, sacana e divertido. Foi inesperado. A fábrica é surpreendente! Traz um sentimento estranho e confuso. Revolta e comove ao mesmo tempo;
Juliana Pinto, psicóloga

;A qualidade dos filmes melhorou bastante em relação às outras edições. A linguagem está mais popular. A visão dos diretores está bem clara, deixaram mais fácil o entendimento. O último filme me impressionou pelo ângulo natural em que os índios aparecem;
Felipe Fernandes, administrador

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