Ver O homem que não dormia projetado na tela do Cine Brasília resolve uma angústia que perseguia o baiano Edgard Navarro há décadas. É apenas o segundo longa do diretor de 62 anos, que, em 2005, venceu sete prêmios com Eu me lembro.
E, ele avisa, pode muito bem ser o derradeiro. ;Sinto que esse filme é o último representante de um ciclo, que termina uma busca. Não a minha busca na vida, isso só termina quando eu morrer. Agora, quero buscar de outra forma;, reflete. Navarro faz perguntas com a câmera desde 1976, quando começou a rodar seus primeiros ;rabiscos; em Super-8. Com o título que concorre ao Candango e será apresentado ao público hoje à noite, ele acredita ter obtido as respostas de que precisava.
Antes mesmo de entrar numa extensa carreira de curtas e médias-metragens ; como Porta de fogo (1985) e Superoutro (1989) ;, o realizador já tinha o roteiro de O homem que não dormia pronto. Em 1978, com 28 anos, elaborou o primeiro argumento, fortemente influenciado por escritos do psiquiatra Carl Jung: uma fantasia em que cinco pessoas, moradoras de um humilde vilarejo, ;sonham o mesmo sonho ou o mesmo pesadelo;. A vinda de um forasteiro de intenções desconhecidas à cidadezinha confronta consciências e traz à tona um histórico de crueldades cotidianas.
A trama, aponta Navarro, não é tão autobiográfica como Eu me lembro, mas é motivada por mitos que ele conhece há décadas. ;Desde a minha infância, ouço falar de botija de ouro enterrada e que quem enterrou foi amaldiçoado, não morreu direito. E precisava de alguém que desenterrasse isso. O filme é criado a partir de uma coisa que já existe no imaginário popular, o tesouro enterrado, para falar de um tesouro que, de alguma forma, o ser humano possui, que tem a ver com a verdade da sua vida;, delineia.
No limite
A descoberta dessa verdade pelos personagens é impedida pelo que o baiano chama de má educação: uma hipocrisia necessária, que tolera os defeitos do outro até certo ponto. ;Para viver em grupo, tem sempre que fazer um teatro, um disfarce;, exemplifica. Na história, as pessoas estão a ponto de perder as estribeiras por conta das mentiras. ;Elas estão no limite do suportável, estão ficando fora de controle. O filme pega essa tensão dramática, esse pressuposto de uma doença psicológica que é coletiva, mas para falar de uma doença da sociedade em que vivemos, dos mundos que estão próximos de nós. O mundo humano criado em torno das pessoas as escraviza. Algumas delas se rebelam até inconscientemente;, analisa.
Apesar de situado nos dias atuais, no distrito de Igatu, ;umbigo; da Chapada Diamantina, a película revela uma carga profunda de autoridade política e religiosa. É como se o poder de uns poucos transformasse a maioria em meros ;ordeiros;. Navarro não tem medo, portanto, de dar vazão a situações que talvez atinjam em cheio o espectador. ;O filme não faz concessão. Vai fundo ou pretende ir fundo em coisas que são incômodas. Nas minhas propostas, sempre trabalhei com coisas que incomodavam muito. Essa coisa do excremento, do palavrão, da sexualidade exacerbada;, justifica.
O diretor ainda não sabe se larga o cinema em definitivo. Pode rumar para a literatura ou para a poesia ; blog, nem pensar, porque acha que não tem disciplina suficiente para alimentar com regularidade uma página pessoal. Mas, livre do projeto que o ;impediu de ser feliz;, mas que o fez encontrar alguma paz, sente que pode fazer o que quiser, com a leveza criativa e também caótica dos primeiros trabalhos. ;Quero continuar com a jovialidade de sempre;, afirma. ;É como se eu tivesse sido liberado de uma sentença. O que quero é fazer filme ou não fazer filme. Viajar ou não viajar.;
O ;primeiro longa;
Talento demais (1999), documentário de 70 minutos sobre o cinema baiano, foi rodado em formato de vídeo e teve distribuição limitada. Exibido em versão reduzida (50 minutos) no Canal Brasil, o filme seria, segundo Navarro, mais um experimento de avaliação e crítica da produção regional do que um longa-metragem oficial. ;É um jogo de palavras com o cinema baiano, que tem talento, mas está lento demais;, brinca. ;Fala sobre política audiovisual. É uma resenha histórica desde os primórdios: ciclo baiano, Glauber Rocha, as políticas de governo. Ainda estávamos sob o regime de Antônio Carlos Magalhães. Fazia muito tempo que não botavam grana nenhuma. Isso ajudou a alavancar, com o movimento de classe, um novo momento, em 2001, que premiaria o primeiro longa depois de uma grande ausência. É aí que entra o Eu me lembro;, recapitula.
44; FESTIVAL DE BRASÍLIA
Até 3 de outubro. Mostra competitiva às 20h30 no Cine Brasília (106/107 Sul), com ingressos a R$ 6 e R$ 3 (meia). Exibição simultânea no Teatro de Sobradinho, no Cinemark Taguatinga Shopping e no Teatro Sesc Newton Rossi (Ceilândia Norte), com ingressos a R$ 4 e R$ 2 (meia). Não recomendado para menores de 14 anos.