Diversão e Arte

Longa Trabalhar cansa instiga público do Festival com combinação inusitada

postado em 30/09/2011 09:05

A produtora Sara Silveira (D) e a equipe de Trabalhar cansa antes da exibição do longa, no Cine Brasília:

Primeiro, o riso. Logo em seguida, o susto. Diante das surpresas de Trabalhar cansa, longa-metragem exibido na segunda noite da mostra competitiva do Festival de Brasília, as duas reações às vezes se embaralhavam. Escolher apenas um gênero cinematográfico para definir a criação da dupla Juliana Rojas e Marco Dutra parecia inviável. Mas, sem abandonar poltronas, o público do Cine Brasília aceitou a provocação dos diretores paulistas e acompanhou com curiosidade o concorrente de maior prestígio internacional na disputa por Candangos. Exibida na mostra paralela Um Certo Olhar (no Festival de Cannes) e finalista do prêmio Sundance/NHK, a produção oscila entre o realismo social, o horror e a comédia dark. Trata, acima de tudo, de um tema que é familiar aos espectadores: os tormentos da classe média.

;A estranheza do filme às vezes não é tão bem recebida pelas pessoas;, admitiu Marco Dutra durante o debate de ontem, no Hotel Kubitschek Plaza. ;No início, tínhamos uma sinopse sobre relações de trabalho.

Mas, como gostamos de elementos bizarros, desenvolvemos o argumento, inserindo morbidez na história;, comentou. A combinação inusitada, no entanto, não afugentou os brasilienses. ;As pessoas riram nos momentos em que o humor era o forte, se assustaram...;, observou Juliana Rojas, logo após a projeção. ;Senti que o público embarcou na nossa ideia, e percebeu as nuances de suspense, drama e comédia;, avaliou Dutra, que exibiu em Brasília, há seis anos, o curta Concerto número 3.

O duo, estreante na competição de longas, instigou a plateia ao mergulhar pacientemente no inferno doméstico de um casal (Helena Albegaria e Marat Descartes) ameaçado pelos assombros do desemprego e das relações entre patrão e funcionário. Segundo Juliana, o tom medonho de algumas cenas foi encenado sem baques, numa progressão tranquila às experiências dos curtas da dupla, como As sombras (2009) e Um ramo (2007). ;Os elementos de terror provocam um outro tipo de reflexão. Na minha família, de ascendência indígena, muitas histórias eram contadas. Aprendi a lidar de uma forma natural tanto com o realismo quanto com a fantasia;, explicou a diretora. ;O público da cidade é muito exigente, gostei muito da reação no fim;, comentou a produtora Sara Silveira.

Prestígio
Na apresentação dos filmes da noite, foi Sara quem dominou a cena. Habitué do Festival de Brasília, onde exibiu os longas vencedores É proibido fumar e Bicho de sete cabeças, ela afirmou que fez questão de inscrever Trabalhar cansa na capital ; e que, para não ficar de fora da edição, adiou a data de lançamento do filme, que estreia logo após o evento. Exibido no Festival de Paulínia ;por questões contratuais; (foi coproduzido pelo polo cinematográfico), o longa venceu o troféu de melhor som e um prêmio especial do júri. ;Amo este festival, amo este público. Brasília tem um negócio engraçado, sempre que subo aqui, me tremo toda. Este é um dos lugares que mais respeito, o meu templo;, comentou a produtora, aproveitando o momento para um apelo político. ;Fiquei muito feliz quando vi Brasília protestando contra a corrupção no dia 7 de setembro;, elogiou, sob aplausos.

Apesar do entusiasmo nos discursos, o filme não deixou o Cine Brasília com estatura de franco favorito. Para uma parte da imprensa que compareceu à sala da Asa Sul, a exibição provocou uma inevitável sensação de déjà-vu ; um grupo de jornalistas que já havia conferido o filme abandonou a sessão logo após os curtas. A reprise, no entanto, não incomodou o ator Marat Descartes, que só começou a analisar o filme depois das sessões de Cannes e de Paulínia. ;É interessante. Cada vez que assisto, enxergo camadas que eu não havia reparado;, analisou o intérprete do personagem Otávio.

Curtas em alta

Mais do que o longa da noite, no entanto, foi o curta paranaense Ovos de dinossauro na sala de estar que conquistou a maior adesão do público ; os aplausos mais fortes da edição, até aqui. O documentário retrata, em planos fixos, o depoimento da norueguesa Ragnhild Borgomanero, empenhada em zelar pela memória do marido, Guido, um colecionador de fósseis. As declarações de amor da personagem, pronunciadas com sotaque carregado, provocaram risos, comoção e palmas em cena aberta ; e o curta saiu da sessão como forte candidato ao Candango de júri popular. ;É um filme difícil, com takes longos. Fiquei muito feliz e emocionado com a forma como ele foi recebido;, afirmou o diretor Rafael Urban. As animações 2004 e Moby Dick não empolgaram.

Num tom mais sóbrio, o documentário A casa da vó Neyde surpreendeu pela franqueza: ele expõe a relação entre a avó do diretor, Caio Cavechini, e o tio, viciado em crack. ;Não é um filme simples, mas ouvi umas fungadas;, comentou o cineasta, ao fim da projeção. ;A ideia não era fazer um curta, mas gravar essas imagens para convencer o meu tio de que a situação dele havia chegado a um ponto insustentável. Mas aí percebi que era melhor dividir do que guardar essas aflições;, afirmou. Não são todos, no entanto, que assimilam com tranquilidade o choque provocado por cenas em que o tio de Caio usa crack. A mãe do diretor, apesar de dar o curta de presente para conhecidos, ainda não teve coragem de vê-lo. E já disse a ele que nunca vai assistir.

* Colaboraram Maíra de Deus Brito e Mariana Moreira

CRÍTICA// Curtas
Moby Dick (animação), de Alessandro Corrêa. Remotas possibilidades para um amor perdido puxam a linha de nostalgia na narrativa, revestida de idealização e da estética construtivista russa, mas que reluz, em conteúdo, arte na;f. (Ricardo Daehn) **

2004 (animação), de Edgard Paiva. Ambientando o filme em redoma de silêncio, o diretor consegue demonstrar um discreto esforço de personagens solitários, que, introspectivos, pretendem romper com a comunicação nula e angariam, pela singeleza, alguma simpatia. (RD) **

Ovos de dinossauro na sala de estar, de Rafael Urban. Hábil em captar o espírito de constrição do rigor alemão, a realização perde o ritmo que dialoga com o estilo de vida da severa protagonista, disposta a entabular um sentimento de amor petrificado. (RD) **

A casa da vó Neyde, de Caio Cavechini. A isenção de uma câmera, por vezes acanhada, caminha num fio de navalha, ao abordar, sem reservas, os sentimentos conflitantes no coração de uma mãe esforçada em impor a nobreza da afeição na vida quase perdida do filho entregue ao vício do crack. (RD) ****

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