Diversão e Arte

Vou rifar meu coração arrebata o público no 44º Festival de Brasília

Ricardo Daehn
postado em 04/10/2011 08:25

Ana Rieper (E), diretora estreante em longas-metragens, comparou a exibição do filme ao nascimento de um filho:

Num certo momento do documentário carioca Vou rifar meu coração, que fechou a mostra competitiva do 44; Festival de Brasília, o cantor Odair José denuncia uma segregação cultural no Brasil. De um lado estaria a ;música popular de Ipanema;, elitista e alinhada. De outro, a MPB verdadeiramente popular, com versos que despertam paixões e identificação no povo.

Na noite de domingo, o público que lotou o Cine Brasília tratou de derrubar esses e outros supostos preconceitos: não só acolheu integralmente a estreia da diretora Ana Rieper (aplaudida em vários momentos durante a projeção) como transformou a sessão num grande elogio aos feitiços do ;brega;.

Foi com alívio que a cineasta recebeu a festa da plateia, a mais participativa desta edição. ;Fiquei muito angustiada. Filho nascendo, sabe?;, comentou. Para reunir os ;causos; narrados no filme, a diretora e a equipe visitaram 15 municípios de Alagoas, Recife e Sergipe. Os depoimentos ; ora cômicos, ora bizarros ; se conectam às canções de ídolos como Amado Batista e Wando, que também comentam sobre experiências amorosas. O efeito das canções e das histórias encontrou sintonia fina com os humores do público, que respondeu com aplausos ao comportamento muito particular de tipos como o político Osmar, que ;administra; às claras uma relação de adultério, separando a ;matriz; da ;filial;.

Em meio às gargalhadas, que praticamente pontuaram a projeção, houve uma fagulha de polêmica. Quando o goiano Lindomar Castilho apareceu na tela, um espectador gritou ;assassino;, lembrando que, por ciúme, o músico matou a ex-mulher, a cantora Eliane de Grammont, em março de 1981. O longa, no entanto, passa à margem do episódio. Ao fim da sessão, quando foi perguntada sobre a omissão, a diretora preferiu falar sobre a abordagem do filme em relação aos personagens. ;Muitas pessoas que estão no filme são moralistas e ao mesmo tempo transgressoras dessa moral vigente. E isso é uma coisa que incomoda, que inquieta as pessoas;, afirmou. ;Ele já carrega o peso de ter sido estigmatizado. Não quis reforçar isso;, completou, na manhã de ontem.

No debate com a equipe do longa, no Kubitschek Plaza, a diretora voltou a comentar sobre a intenção de fugir de lugares-comuns sobre o tema. ;As pessoas apaixonadas se declaram abertamente ridículas, como diz o Wando;, comentou. ;A ideia era caminhar numa linha ambígua, para não reforçar estereótipos.; O humor do filme, ela contou, não estava no projeto inicial: ;Não tive a intenção de fazer piada. Eu tinha uma visão muito séria, politicamente correta, para retratar a aceitação social de relações amorosas diferenciadas. Na realização é que apareceram as posturas bem-humoradas;.

Jackeline Salomão e Danielle Araújo, diretoras do curta brasiliense Um pouco de dois

Todo sentimento
A seleção dos curtas da noite trouxe mais camadas sentimentais ao clima da noite. No brasiliense Um pouco de dois, as diretoras Jackeline Salomão e Danielle Araújo alternam depoimentos de casais e cenas dramatizadas para tratar do cotidiano em relações amorosas. ;Os filmes vieram com o mesmo tema, o amor, e tiveram um nível altíssimo. Não podemos comparar o nosso curta com o longa, que foi ovacionado, mas tivemos muitos aplausos, o que foi ótimo;, afirmou Jackeline. Para Danielle, a reação simpática da plateia foi uma boa surpresa, que confirmou as intenções do curta. ;Não sabíamos o que ia acontecer. Queríamos fazer um filme que dialogasse com o público e conseguimos isso;, avaliou.

No caso do curta paulistano L, de Thais Fujinaga, o que aflora é o aspecto cruel da amizade entre uma adolescente de 11 anos e um menino descendente de chineses. O sentimento de desajuste dá moldura para a narrativa, inspirada em filmes da China e da Coreia do Sul. ;Busquei o contato de aspectos físicos e sensoriais, com a proximidade de corpos na câmera, que traz uma sutileza;, comentou a diretora, no debate de ontem.

Na contracorrente do tema principal da noite, os curtas de animação arriscaram matizes menos sutis. Na sátira Rái sossaith, as charges do paulista Thomate desmontam o laquê dos poderosos de Ribeirão Preto. ;A realidade é muito mais grotesca do que aquilo que meu filme mostra;, apontou o diretor.

No brasiliense Ciclo, de Lucas Marques Sampaio, as fases da vida são observadas com um traço simples e violento. ;Os outros filmes puxaram para o lado cômico. O meu acabou ficando um pouco diferente. Ele foi produzido de uma forma pessoal, desenhado à mão;, comparou Lucas, que desenvolveu o curta como projeto para uma disciplina do Instituto de Artes da Universidade de Brasília (UnB).

CRÍTICA// Curtas
Ciclo
(animação), de Lucas Marques Sampaio. Um exercício monocromático estranho em meio a uma noite de filmes sentimentais e coloridos em excesso. A economia de elementos narrativos deixa o curta mais perturbador. (Yale Gontijo) ***

Rái sossaith
(animação), de Thomate. O DNA de chargista é evidente neste curta-metragem. Mas é prejudicado pelo humor que repete os lugares-comuns de críticas de gente nada diferenciada da alta sociedade e os ridículos programas midiáticos que se prestam a homenageá-los. (YG) **

L, de Thais Fujinaga. A diretora paulistana apresenta total domínio narrativo nesta história tão curta e cheia de significados. Narrativa simples com mise-en-sc;ne bem cuidada. Melhor filme de toda a competição. (YG) *****

Um pouco de dois,
de Danielle Araújo e Jackeline Salomão. O apartamento vazio em que se desenrola a encenação de um casal de atores é sinal da escassez dramática deste título híbrido, que mistura ficção e documentário com separação perfeitinha demais entre os gêneros. (YG) *

;Quando faço filme, é sobre o outro e sobre mim. Não procurei coisas bizarras, talvez eu até seja bizarra. Encontrei contradições em estado bruto, em pessoas que passaram por situações muito particulares. Elas chegaram até mim;

Ana Rieper,
diretora de Vou rifar meu coração, no debate de ontem

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