Nahima Maciel
postado em 09/10/2011 10:20
A Vila Planalto há muito começou a perder a configuração original. Construídas pelos pioneiros, as casas de tábuas estão cada vez mais raras e, aos poucos, ficam no passado. Mas a Vila não se dobra à afronta da memória e parece estar em busca de outra vocação, que não seja a histórica. Nos últimos cinco anos, artistas plásticos da cidade cedem ao encanto da convivência de bairro e procuram o local para instalar ateliês e residências. A iniciativa tem pontos de partida bem diversos e cada caso é único, mas duas temáticas são constantes nos discursos desses criadores: o bairro tem mais humanidade e ambiente propício à produção artística.A gravadora pernambucana Cristina Carvalheira levou 15 anos para realizar o sonho de morar na Vila Planalto. Desde que trocou Recife por Brasília, em 1987, a artista procurava um local com menos cara de arquitetura moderna e mais organização de bairro. Próxima à Esplanada e ao centro da cidade, a Vila encaixou-se nos planos. ;Acho que gostei tanto porque tem um pouco de cidade do interior, lembra os bairros de Recife, tem essa coisa de ter vizinho e de conversar com ele, a gente se comunica. Nos apartamentos do Plano, as pessoas mal se falam;, reclama. ;E aqui você encontra todos os estratos sociais. É bem Brasil.; A casa de Cristina tem vista para o Lago Paranoá e muita madeira ; um detalhe pensado para dialogar com a tradição do bairro. Do ateliê, no qual guarda a prensa usada para imprimir as gravuras, enxergam-se duas margens, o Setor de Clubes e alguma vegetação da qual a artista extrai cores e, eventualmente, modelos para os trabalhos. Mais adiante está a casa de Fernando Madeira, projetada em um corredor entre dois quintais e desenhada pelo próprio artista.
O caso de Madeira com a Vila Planalto também é antigo. Durante uma visita de um jornalista belga que queria escrever sobre morar em Brasília, o artista teve o estalo. ;Fiquei achando que a Vila era o lugar.; Também pesou o fato de Madeira, arquiteto de formação e restaurador do Iphan, não ter projetos na cidade. A fachada da casa pouco chama atenção, mas o interior tem a marca dos trabalhos do artista.
Madeira é um coletor. Recolhe papéis e restos de vegetação para compor colagens e pinturas. Usou o mesmo método na casa da Vila. Há restos de madeira de casas destruídas do Norte, tacos e portas de armário e pisos de velhos apartamentos brasilienses, pedaços de azulejos destinados ao lixo e paredes de adobe muito semelhantes às construções mediterrâneas. Uma pequenina joia cravada em um corredor na beirada da Vila Planalto. ;Aqui, o tipo de vida é completamente diferente;, explica Madeira, que trocou o apartamento na Colina pela casa há cinco meses . ;Para mim, é muito importante pisar no chão. Além disso, não gosto de dirigir e aqui faço tudo a pé. Acho que esse lugar atrai os artistas porque tem muita vida popular.;
Angélica, mulher de Madeira e historiadora de arte, aponta a convivência popular como um dos charmes. ;O pessoal da classe média está descobrindo. Quem não tem preconceito vem. É um lugar muito próximo de tudo, mas não tem benfeitoria.; Nem regularização. Comprar terreno ou casa na Vila Planalto ainda gera incerteza, já que não há escrituras por conta da falta da Certidão de Habite-se. A artista Yana Tamayo acompanha com apreensão a especulação imobiliária no bairro. Ela mora em um apartamento com vista para área de preservação e se surpreende com a aparição veloz de novas construções e, principalmente, quitinetes.
Lago inspirador
A mudança, em 2007, também interferiu na construção da obra plástica. Uma parte das fotografias de Yana trata das escalas monumentais de Brasília e da pequenez humana nesse cenário. A organização matemática do Plano Piloto levou a artista a refletir sobre a ocupação do espaço. ;A cidade não dá espaço para o acaso, ela exige que você se planeje sempre. Meu trabalho é sobre como a cidade pode dialogar com a subjetividade;, conta. A vivência de bairro de cidade do interior experimentada na Vila Planalto fez Yana observar como os moradores se apropriam dos espaços e os transformam. ;A Vila é central e é totalmente excêntrica.;
O advogado José Carlos Menezes descobriu o bairro porque trabalhava na Esplanada e almoçava por lá com frequência. Quando quis se aposentar do serviço público e montar o ateliê de desenho e mosaico, foi fácil escolher o local. A casa, projetada pelo próprio artista, está entre as mais diferentes da Vila: enviesada, toda branca, tem portão alto e ostenta perfil mediterrâneo imponente. Menezes começou com os mosaicos. Dava aulas e criava peças. Hoje, deixou as pedras um pouco de lado e investe na ilustração botânica. O ateliê também é espaço de aulas e vive de portas abertas. Nas paredes de um vasto salão, os desenhos do artista ajudam a emoldurar a leveza do espaço. ;É um lugar livre;, brinca. ;A Vila é uma delícia, é uma cidade do interior dentro de Brasília: tem criança jogando bola na rua, cachorro latindo, caminhão com alto falante. Me faz voltar à infância. ;
A infância de Rosely Leal sempre esteve ligada à Vila Planalto. A artesã nasceu e cresceu no local. Os pais pioneiros chegaram ao bairro em 1960, vindos do Piauí para construir a capital. Mas, desde o ano passado, Rosely precisou trocar as ruas irregulares pelo ordenamento do Lago Sul. O ateliê As Preciosas Marias cresceu tanto que comeu o espaço da casa. Junto da irmã Olivânia, Rosely produz trabalhos em patchwork e bordados. A artista providenciou um terreno ao lado do ateliê e, quando terminar de construir outra casa, voltará para o bairro. Mas a Vila já não é a mesma da infância. Rosely começou a identificar comportamentos novos desde que ;o pessoal que trabalha nos ministérios; descobriu as vantagens do local. ;Está mudando bastante;, repara. ;Ainda tem aquela afabilidade, mas os mais antigos ficam um pouco mais arredios. O bairro vira meio dormitório e as pessoas novas não participam da comunidade.;