Pedra Azul (ES) ; O Espírito Santo é um estado de sorte. Além de ter abrigado o jesuíta missionário José de Anchieta ; que levou a cultura e a religião aos índios e portugueses ; recebeu influência de diversas correntes migratórias, como italianos, alemães, gregos, árabes e portugueses que procuraram morros, canais, praias, pedras e montanhas para se instalar ; cada qual com sua cultura e seus costumes. Foram, sobretudo, os alemães e os italianos que mais deixaram vestígios, a ponto de, até hoje, na quarta geração, os italianos ainda lembrarem tim-tim por tim-tim o que os antepassados comiam e de que forma preparavam os pratos.
Prova disso é o menu que o chef Fernando Lorenzoni vai defender, nos dois primeiros fins de semana de novembro, durante o Festival Pedra Azul Gourmet, intitulado O casamento de meus pais. ;Se foi assim, não posso garantir ; eu não estava presente. Mas pelos hábitos alimentares com os quais fui criado, posso imaginar ;, explica o chef do Don Lorenzoni, restaurante instalado num paiol, que elegeu trouxinha de bacalhau com cogumelos em massa filo; caldo baronesa com requeijão, alho-poró e socol crocante e joelho de porco defumado, desossado, ao molho de chocolate e café, acompanhado de purê de maçã verde em batata ao murro ; tudo escoltado por grandes vinhos.
É claro que o chef, formado em Lausanne, na Suíça, deu uma roupagem contemporânea ao cardápio regional, assim como a bebida, que acompanha a pauta gastronômica, não é mais aquela produzida em casa pelos imigrantes. Graças aos descontos de ICMS concedidos no porto de Vitória, vinhos importados tem preços mais vantajosos do que em outros estados. Isso ajudou na formação de confrarias, das quais a mais famosa chamada Soaves (Sociedade dos Amigos do Vinho do Espiírito Santo), promoveu, no século passado, um evento para discutir e degustar a bebida.
Por 10 anos consecutivos, apreciadores e especialistas se reuniram, sempre no inverno, no paradisíaco Parque Estadual de Pedra Azul, distante 90 quilômetros de Vitória, instalado num exuberante maciço, de quase 2 mil metros de altura, cujo nome decorre da rocha formada de granito e gnaisse que altera a cor ao longo do dia devido a líquens aderidos à superfície. Inicialmente, o grupo de degustadores era formado por médicos que tinham em comum a paixão pelo vinho e até hoje ainda há quem identifique o evento como ;reunião dos médicos;. Eles continuam atuantes, como o enófilo paulistano Mário Telles Jr., um dos fundadores da Associação Brasileira de Sommeliers (ABS-SP), que conduziu degustação de seis vinhos de Bordeaux ;, mas a organização mudou de mãos.
Com patrocínio do governo estadual, do Sebrae, e da Fecomércio, o jornal A Gazeta de Vitória relançou a prática, em outubro de 2009, no 1; Encontro Internacional do Vinho, realizado na mesma Pousada Pedra Azul. Ano passado, o encontro desceu a serra e se espraiou no Hotel Ilha do Boi, junto do litoral.
Os tops chilenos
Este ano, o 3; Encontro Internacional do Vinho voltou às suas origens, mas renunciou à estação mais fria do ano. Preferiu os dias amenos de outubro ; o que não impede de a temperatura cair à noite para 10;C. Com dias ensolarados e noites frias, ninguém reclamou por provar cinco dezenas de vinhos de excelentes cepas produzidas ao redor do mundo. Da maratona de 50 rótulos participaram argentinos, chilenos, espanhóis, italianos, uruguaios, franceses e brasileiros.
Bastante disputada foi a apresentação do projeto Top Winemakers 2010, uma iniciativa que visou homenagear os 200 anos da independência do Chile. Dez dos mais importantes enólogos chilenos elaboraram separadamente um vinho com cabernet sauvignon, da região de Maipo, o terroir mais representativo daquela variedade vinífera. O resultado dessa experiência foram 10 belíssimos vinhos nos quais se pode notar a diferença de estilo de cada enólogo. Os vinhos são importados pela Casa Porto, que os vende numa caixa de madeira por R$ 4,5 mil. Do kit fazem parte DVD e livro sobre o projeto.
O encontro teve momentos de muito bom humor, especialmente durante a palestra do médico ginecologista Eliano Pellini, sócio da ABS-SP, que falou sobre vinho e sexualidade e de goles inebriantes proporcionados por meia dúzia de champanhes, a começar pela Veuve Clicquot, Moet Chandon, Piper-Heidseck, Bollinger, Pommery Cuvée 1990 e como gran finale, a Cristal de Louis Roederer, cuja garrafa custa R$ 1,5 mil.
Mulheres nas caves
Pela primeira vez, o Encontro trouxe a visão feminina no quinto painel intitulado ;Eles por elas;, no qual quatro mulheres discutiram aspectos da produção, da comercialização, da história e do serviço do vinho. Proprietária de uma vinícola biodinâmica, a Mas Estela, ao lado do marido Diego Soto, quase na fronteira da Espanha com a França, Nuria Soto lembrou que, quando começou seu trabalho, ;mulher enóloga não era bem- aceita;. A bodega fica próxima ao Mediterrâneo e vizinha do restaurante de Ferran Adrià, que agora vai se transformar em fundação. Com 90% de garnacha, 5% de sirah e 5 % de carignan, o tinto produzido pelo casal era servido como digestivo no El Bulli.
Participaram ainda do painel, Jane Pizzato, diretora de comercialização da vinícola gaúcha que leva o nome da família; Alexandra Corvo, dona de escola de vinho em São Paulo; e a jornalista capixaba Renata Rasseli, que lembrou a presença da mulher nas adegas desde que a viúva Clicquot teve de assumir repentinamente a produção de champanhe.
A repórter viajou a convite do evento
Serra de delícias
O chef capixaba Juarez Campos batizou de Oriundi um dos seus três restaurantes localizados em Vitória, tal a sua proximidade com a culinária italiana. Os outros dois não são mais de sua propriedade. A importância do chef pode ser medida pelo convite que recebeu da edição 2011 da Semana Mesa SP, a última do mês, organizada pelo Senac e pela revista Prazeres da Mesa para atuar ao lado dos chefs italianos Massimo Bottura, Enrico Cerea, Pino Cuttai e outros, nas apresentações que terão como tema ;Itália-Brasil: a caminho de uma cozinha consciente;.
;Vou ser a babá deles;, brincou Juarez, depois de pilotar cardápio nas montanhas capixabas que, por isso mesmo, chamou-se ;muito além da moqueca;. E o que é que as altitudes reservam de bom? Muitos sabores, como o socol ; delicioso embutido feito de carne de porco fresca e maturada por 60 dias. ;Era um alimento e não um tira-gosto. Fazíamos todos juntos, quando matávamos os porcos;, conta Cacilda Lorenção (era Lorenzoni antes do escrivão errar a grafia no registro oficial). Cacilda, que tem mais de 80 anos e ainda sobe em árvore para colher lichia, é tia do chef Fernando. Em sua casa, fazia-se o embutido com um corte de segunda tirado do pescoço do porco, onde há muita gordura, até o dia em que um visitante sugeriu usar o lombo, que é mais magro e mais macio. Do vocábulo italiano ossocolo, que significa pescoço, ficou a expressão socol.
Bacalhau e cremes
Cortado em finíssimas lâminas fritas em alta temperatura, o socol crocante abriu o cardápio da serra sobre uma salada orgânica com rendas de tapioca. Seguiram-se bacalhau (foi introduzido na região pelos portugueses) com banana-da-terra e abóbora, e polenta grelhada com fonduta de morbier (tipo de queijo local) e molho de linguiça. O terceiro prato, além da entrada, que teve ainda assinatura de Gustavo Corrêa, dono do bufê Itamaraty, foi um pedacinho de leitão servido com redução de espumante de jabuticaba, feito por italianos no bairro de Santa Tereza, em Vitória, batata-baroa e couve. De sobremesa, clafoutis (receita francesa de creme com frutas) de cereja ao creme inglês. Cada prato foi acompanhado de uma taça de vinho harmonizado pelo jornalista Ricardo Castilho, diretor da Prazeres da Mesa.
Receita
Clafoutis de cereja ao creme Inglês
Ingredientes:
Para 12 pessoas
; 4 ovos
; 220g de açúcar de confeiteiro
; 18 colheres de sopa de creme de leite fresco
; 6 colheres de sopa de suco de maracujá natural
; 2 favas de baunilha
; 400g de frutas frescas em cubos
; 10g de aroeira moída
Modo de preparar
; Unte um recipiente refratário, para cada pessoa, com manteiga e polvilhe com açúcar.
; Leve à geladeira por 30 minutos.
; Bata os ovos ligeiramente com 200g do açúcar de confeiteiro.
; Adicione o creme de leite e o suco de maracujá e misture bem.
; Acrescente aroeira moída.
; Abra a fava de baunilha; raspe bem as sementes e adicione
à mistura de creme, suco e ovos.
; Disponha as frutas nos refratários e cubra com a mistura.
; Polvilhe com um pouco de açúcar de confeiteiro.
; Leve ao forno preaquecido a 180;C até ficar dourado.