Diversão e Arte

Espanha e Brasil se confundem nos versos do escritor Eduardo Garcia

Nahima Maciel
postado em 14/10/2011 08:49

Garcia:

O poeta espanhol Eduardo Garcia levou anos para entender a própria obra. Depois de seis livros publicados e 16 anos de trajetória, ele agora sabe exatamente a origem dos versos que um dia creditou ao gosto pelo realismo fantástico. Filho de espanhóis, Garcia nasceu em São Paulo, aprendeu a falar em português e, aos 7 anos, voltou com os pais para Madri. As duas línguas se instalaram em proporções iguais na cabeça do garoto, quem mais tarde escreveria poesias inspiradas em um mundo fantástico.

Um dia, lendo escritos do italiano Claudio Magris, ele percebeu: ;Eu tinha esquecido que o Brasil que idealizava era um sonho e descobri que passei 10 anos escrevendo sobre a impossibilidade de morar em dois lugares ao mesmo tempo. O desejo sempre está do outro lado. Por definição, é algo que você não pode ter. Se você conseguir, deixa de ser desejado. Isso acontece com minha identidade. Moro num lugar do mundo onde me sinto muito bem, mas não posso esquecer que nas minhas mensagens sonhadas têm coqueiros, toca Caetano Veloso e se fala português;.

Garcia mora na Espanha e veio a Brasília para lançar Antologia pessoal, primeira coletânea de poemas em português, uma seleção de versos de toda a carreira do poeta traduzidos por Antonio Miranda e editados pela brasiliense Thesaurus. A tradução de Antologia pessoal foi iniciativa de Miranda. ;Um dia abro meu correio e acho um tal Antonio Miranda. Não sabia quem era, nada. Disse que queria traduzir meus poemas e começamos uma relação amistosa. Ele acabou se comprometendo com o livro;, conta o escritor.

A poesia de Garcia tem vários pontos de conexão com a contemporaneidade, mas é no universo interior do poeta que estão ancorados a maior parte dos versos. ;Nós, escritores transterrados como eu, temos duas pátrias, por isso acabamos não tendo nenhuma. Construímos uma pátria na linguagem, construímos um mundo com palavras. Isso é muito especial para mim;, diz.

Inquietação

A poesia, para o espanhol, pode ser encarada de duas perspectivas. Do ponto de vista individual, ela funciona como a busca de uma resposta para uma pergunta existencial sobre a própria identidade. Garcia começa a escrever a partir dessa inquietação. Mas o que vem depois é desconhecido. ;Para mim, é fundamental não saber aonde vai o poema. Se souber, posso fazer literatura, fica muito bonitinho, bem escrito. Mas a poesia é algo mais, a técnica é necessária, mas você tem que não saber, tem que ser um acontecimento. E à medida que vai acontecendo você vai descobrindo coisas que não sabia. É um pouco aterrorizante também.;

Do ponto de vista social, o alcance da poesia é bastante largo e carrega certa responsabilidade. Em um mundo marcado pela rapidez e eficácia, o tempo de um verso se torna um luxo. ;O que faz a poesia no século 21? Acho que faz tudo, mais que nunca, porque ela vai na contramão de uma civilização tecnocrática, uma civilização que cada vez mais cultua a razão, a ciência, o mercado, tudo isso nos faz ser gente muito eficaz e produtiva, mas nos aproxima das máquinas, dos robôs. A poesia, pelo contrário, apela à alma.;

Poema

Uma mulher

Uma mulher dormida desliza
pelo corredor, uma mulher descalça
se dirige na noite até minha porta,
com a ausência em seus olhos transparentes
passa sem ruído, alheia em sua galáxia
se mete entre os lençóis, seu abraço
é frio como o mármore, mas sinto
tremer seu corpo contra o meu, tremer
reflexos na água, enquanto eu
sigiloso procuro não romper
o instante, deixá-la que sonhe
como nunca serei, como quisera
para espantar sua ausência, mas logo
se levanta, sem despedir-se vai embora,
remota em sua região;. E agora sei
que virá muitas vezes, que o cheiro
que me deixa fugaz entre os lençóis
é o odor do céu, e o inferno
sua mirada sem vida, seu desejo
por um outro talvez, para um fantasma
que a espera na noite, em um lugar
onde nunca estarei.

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